A história dos adicionais por tempo de serviço é longa. Esses incrementos na remuneração de magistrados e outras carreiras da Justiça, conhecidos como “quinquênios”, são baseados somente na passagem do tempo, sem considerar desempenho e o teto do funcionalismo.
Em seu capítulo mais recente: o Tribunal de Contas da União (TCU), em abril de 2023, havia determinado a suspensão do pagamento dos quinquênios, sob o argumento de forte impacto aos cofres públicos. Essa decisão foi objeto de mandado de segurança ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em dezembro de 2023, o ministro Dias Toffoli anulou a decisão do TCU e liberou o pagamento do adicional por tempo de serviço aos magistrados da Justiça Federal que já tinham incorporado a parcela ao seu patrimônio.
Mas um novo capítulo iniciou em abril, com a aprovação da PEC 10/2023 pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A proposta busca conceder adicional por tempo de serviço de 5% a cada cinco anos para magistrados e outras carreiras, como promotores, procuradores da República, defensores públicos, membros da Advocacia-Geral da União, ministros e conselheiros de cortes de contas.
A Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado, calculou que a PEC 10/2023, apelidada de “pauta-bomba”, poderia levar a um impacto fiscal anual de até R$ 42 bilhões. Contudo, a proposta não só coloca em risco o orçamento público. Ela também vai de encontro ao debate em curso em busca de uma remuneração mais racional e de uma maior eficiência no funcionalismo público.
Nesse contexto, esse artigo explora, com base em dados concretos, as desigualdades salariais existentes no funcionalismo público e analisa como a proposta poderia agravar esse cenário.
Como as desigualdades salariais têm se manifestado no Brasil?
O funcionalismo conta com mais de 11 milhões de servidores na União (10%), nos estados (20%) e nos municípios (70%). Esse universo é heterogêneo: abrange pessoas no Executivo, Legislativo e Judiciário com funções diferentes, desde funcionários de hospitais municipais até ministros do STF.
As remunerações também são distintas entre si. Segundo o Atlas do Estado Brasileiro, em 2022, dentre os 11 milhões de servidores, a maioria não recebeu salários muito altos: 50% ganhou menos de R$ 3.391, enquanto 20% recebeu até R$ 5.000. Esses valores são associados, em especial, aos servidores municipais, que estão mais próximos da prestação de serviços à população.
Mais acima na pirâmide, há a elite com privilégios concentrados: cerca de 0,94% dos servidores recebeu entre R$ 27.000,00 e o teto constitucional, equivalente ao salário de um ministro do STF (na época R$ 41.650,92 e hoje R$ 44.008,52). No extremo topo, uma parcela fez jus a valores ainda acima do teto (0,06%). São os “supersalários”, protagonistas de outra longa história no Brasil, e compostos por “indenizações” destinadas a cobrir gastos com moradia, vestuário e educação privada de filhos.
E quem faz parte dessa elite? Os salários mais altos estão concentrados no Judiciário. Para dar um exemplo: a mediana da remuneração de magistrados a nível federal é praticamente sete vezes maior do que a paga aos servidores que atuam nos municípios.
Os salários no Judiciário não apenas superam os salários “de base” das outras carreiras, mas também é comum que os magistrados recebam remunerações que ultrapassam o teto constitucional. Em 2023, uma análise fundamentada nos dados do Painel de Remuneração do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou que aproximadamente 12 mil magistrados, incluindo juízes, desembargadores e ministros, excederam o limite salarial estabelecido em abril daquele ano. Em muitos casos, essas remunerações ultrapassaram significativamente as dos profissionais do setor privado.
Além dessas discrepâncias, o investimento financeiro na manutenção do Judiciário é considerável inclusive em comparação com outros países. Um levantamento recente da Secretaria do Tesouro Nacional mostrou que o gasto da União com esse poder alcança a marca de aproximadamente R$ 160 bilhões por ano, com cerca de 83% desse total direcionado para a remuneração de servidores.
O estudo indica que esse montante equivale a cerca de 1,6% do PIB brasileiro. Esse percentual ultrapassa a média global: nos países desenvolvidos, o gasto médio é de apenas 0,3%, enquanto nos países emergentes é de 0,5%. Embora algumas críticas apontem a falta de consideração das diferenças estruturais entre os países analisados, a comparação internacional destaca o considerável impacto do Judiciário nos cofres públicos.
Como a PEC 10/2023 agrava o cenário atual?
O primeiro ponto da PEC 10/2023 é óbvio: ela favorece a elite do funcionalismo. Um exemplo é a situação dos magistrados, que atualmente desfrutam dos salários mais elevados entre os servidores públicos e alguns recebem inclusive acima do teto. Com a aprovação da proposta, eles ainda receberiam vantagens automáticas pelo simples decorrer do tempo.
O segundo problema é que a PEC 10/2023 contorna o teto constitucional, que já vem sendo desrespeitado com o recebimento de “indenizações”. Para conter essas práticas, a Câmara dos Deputados aprovou há três anos uma proposta de lei contra os “supersalários”. Essa iniciativa está estagnada no Senado e há indicações que ele poderia ser pautado. Mas enquanto uma lei ordinária poderia restringir os “supersalários”, com a PEC, eles seriam garantidos como parte da Constituição.
O terceiro ponto crítico se refere ao impacto tanto no orçamento quanto no funcionalismo público em si. A Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece um limite para as despesas com pessoal para garantir o equilíbrio dos diversos compromissos do poder público. Se as carreiras de elite continuarem a absorver uma parcela cada vez maior das despesas de pessoal, isso significará retirar recursos de outras carreiras.
Essa hipótese tem implicações que se estendem até mesmo à atratividade das carreiras que compõem a base do funcionalismo atualmente. Apesar de alguns defensores da PEC argumentarem que a discrepância entre os salários iniciais e finais dos juízes federais é pequena, o que poderia resultar em falta de estímulo, o problema se mostra mais sério quando consideramos os servidores que trabalham na saúde, por exemplo.
Estes profissionais já estão entre os que recebem os menores salários, apesar de possuírem qualificação superior. Diante da manutenção desses baixos salários e da escassa perspectiva de melhora, tais carreiras perdem atratividade e enfrentam desafios significativos na reposição de pessoal.
O quarto ponto é que a PEC 10/2023 vai de encontro a todo o debate em curso sobre uma política eficaz de progressão e promoção de carreira. Essa discussão não deve se limitar apenas ao tempo de serviço; é importante priorizar o desempenho e o desenvolvimento do profissional ao longo de sua trajetória. O adicional por tempo de serviço, ao contrário do que argumentam os defensores da PEC, pode criar um incentivo negativo para o desempenho, pois profissionais com mais tempo de serviço, mas pouco produtivos, podem acabar ganhando mais do que profissionais produtivos, mas com menos tempo de serviço.
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Especialistas observam que a PEC 10/2023 foge de qualquer debate mais racional em prol da reorganização da remuneração de servidores, mas que o caminho para isso não tem sido e, ao que tudo indicado, não será fácil.
Parece ser necessário que a União, dada sua posição, lidere iniciativas para promover debates e implementar um programa de reorganização das carreiras junto ao Congresso Nacional. Esse plano poderia incluir medidas como a redução do número de carreiras e a implementação de um sistema de avaliação de desempenho como critério exclusivo para promoções.
Como próximos passos, a PEC 10/2023 precisará ser discutida e votada em dois turnos no Senado e será aprovada se obtiver pelo menos 3/5 dos votos dos senadores (49 votos) em cada um dos turnos. O mesmo processo acontecerá na Câmara dos Deputados, em que será necessária a aprovação por 308 deputados.