PEC das Praias: ‘eles vão invadir?’

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“Nós tamo entrando sem óleo nem creme, precisando a gente se espreme

Trazendo a farofa e a galinha, levando também a vitrolinha

Separa um lugar nessa areia, nós vamos chacoalhar a sua aldeia

Mistura sua laia, ou foge da raia, sai da tocaia, pula na baia

Agora nós vamos invadir sua praia”

Roger Rocha Moreira, Ultraje a Rigor

O verso irreverente do grupo de rock dos anos 1980 serve de metáfora para a quebra de barreiras sociais e a invasão de espaços elitizados por pessoas de classes menos favorecidas. O século 21 os tornam ainda mais atuais: nos países de democracia constitucional como o Brasil, onde vigora o Estado de Direito e o respeito aos direitos fundamentais, a praia é do povo e, ao contrário do que pretende a PEC 3/2022, não pode ser privatizada. 

Desde o desembarque das primeiras naus portuguesas, a costa brasileira seduz pela grandiosidade e esplendor. Os seus 10 mil quilômetros de extensão litorânea foram o prelúdio para as construções do território e da identidade nacionais, o que reflete a importância crucial dessa região brasileira, uma das 20 mais extensas e habitadas do mundo. 

Em razão dessa importância histórica, ligada à necessidade de defesa e de segurança nacional, são bens da União, mas estão na iminência de passarem para mãos privadas ou dos estados e municípios, se aprovada a referida proposta, flagrantemente inconstitucional.

Toda obra ou construção situada na costa marítima brasileira e nas margens dos rios e lagoas é denominada “terreno de marinha”, pois coube, historicamente, ao ramo naval das Forças Armadas a proteção e a defesa dessas áreas.

O Decreto-lei 9.760, de 5 de setembro de 1946, define os terrenos de marinha como aqueles situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés, que correspondem a uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha da preamar (média da maré cheia), definida com base nas marés máximas do ano de 1831.   

A despeito do conceito intrincado, ele foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 quando ela determinou, no seu artigo 20, inciso VII, que esses terrenos são bens da União. Assim, todo e qualquer proprietário de imóveis nessas áreas têm o domínio útil, vale dizer, o direito de posse, de uso e gozo, com a possibilidade de alienação ou transmissão por herança.

No caso de alienação, paga-se à União uma taxa de transferência, o “laudêmio”, correspondente a 5% do valor de avaliação do imóvel. Não havendo venda, paga-se à União, anualmente, outra taxa, o “foro”, equivalente ao valor de 0,6% do valor do terreno (caput do art. 101 do Decreto-lei 9.760/46).  

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que define as regras de transição da Constituição passada para a atual também regulamenta a matéria.  Determina o art. 49 que “a enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima”.

Ou seja, a Constituição institui, em favor da União, direito imobiliário perpétuo: ela, como senhorio, detém o domínio direto do bem e o enfiteuta ou foreiro (o particular) é investido no próprio conteúdo do direito de propriedade, o domínio útil. É a Secretaria de Patrimônio da União o órgão responsável pela aplicação e gerenciamento dos contratos de aforamento. 

A PEC das Praias altera os referidos dispositivos para transferir os terrenos de marinha e seus acrescidos aos estados e municípios, se afetados ao serviço público ou para expansão do perímetro urbano; aos foreiros e ocupantes regularmente inscritos na SPU até a publicação da EC; aos ocupantes não inscritos, se a ocupação data de cinco anos antes da publicação da EC e aos cessionários. O objetivo da proposta é, em suma, acabar com o instituto da enfiteuse nos terrenos de marinha.

Há, no entanto, obstáculos intransponíveis à aprovação da emenda, as chamadas cláusulas pétreas ou “superconstitucionais”, presentes no art. 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior, que protegem princípios e valores constitucionais básicos, dentre os quais, os direitos fundamentais. 

Se, antigamente, a Coroa protegia tais áreas de invasões bélicas, hoje, o fundamento para a proteção não é menos importante: são áreas belíssimas que permitem usos e ocupações diversas, o que atrai especulação imobiliária, sujeitando-as às variações de mercado e às leis que lhe são próprias, como a livre concorrência e a lei da oferta e da procura.

Uma livre comercialização do solo dos terrenos de marinha, visando ao lucro de investimentos privados nacionais e estrangeiros gerará uma consequência desastrosa para a população local: a segregação socioespacial ou urbana.  

Nas beiras dos rios e do mar moram populações tradicionais: comunidades ribeirinhas, caiçaras, de pescadores e quilombolas. Hoje, o Estado as protege, garantindo-lhes o seu direito à moradia, nos termos do que impõe o art. 6º, da Constituição Federal.

O Decreto-lei 1.876 de 1981 concede isenção do foro e do laudêmio a essas pessoas, consideradas carentes ou de baixa renda, cuja situação econômica não lhes permite pagar esses encargos sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família. 

Sem a proteção estatal e com a inevitável valorização do preço do solo em valores superiores ao aumento da renda dessa população, as áreas hoje por ela ocupadas tornar-se-ão praticamente inacessíveis. Desse modo, ela será “jogada” para as regiões periféricas, geralmente desprovidas de elementos básicos de infraestrutura, como saneamento, além de problemas como violência e marginalidade, o que o que implicará, fatalmente, na ofensa a sua dignidade humana (art. 1º, III, da CF). 

O meio ambiente, por seu turno, será implacavelmente afetado. É missão constitucional do Estado proteger e evitar danos ambientais (art. 225, da CF) através da preservação, e não aniquilação desses ecossistemas.

Conforme o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (art. 10, da Lei 7.661/88), as praias são bens públicos de uso comum e, portanto, não podem ser privatizadas. Atualmente, a ocupação dos terrenos de marinha não implica nessa privatização, pois o controle sobre o acesso às praias e o crescimento urbano é mantido, com a proteção e a fiscalização do Estado.  

Ainda assim, hoje já se prenunciam situações afrontosas que, com a aprovação da PEC, se tornarão ainda mais corriqueiras: em muitas cidades do Brasil, hotéis, condomínios, restaurantes, barracas de praia, dentre outros estabelecimentos permitem a entrada apenas de hóspedes ou clientes. Tais abusos são contestados judicialmente pela população, gerando decisões diversas dos tribunais e uma indesejada insegurança jurídica sobre o tema. 

Embora haja a necessidade da autorização da SPU para qualquer ocupação nas praias, esse espaço público vem sendo ocupado por áreas VIP em shows, impedindo o trânsito equitativo da população: o povo é obstado de circular livremente para permitir que algumas pessoas desfrutem de área privativa com comida, bebida, ar-condicionado e chão de madeira. 

A praia é um bem público de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a ela. 

Os direitos protegidos pelas cláusulas pétreas no inciso IV, do § 4º, do art. 60 vinculam de forma imediata todos os poderes (§ 1º, do art. 5º) e representam as decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade, exercendo uma função educativa e conscientizadora que não pode ser ignorada. 

Ao aprovar uma modificação de tamanha severidade no seu texto constitucional, retirando das mãos do Estado o controle, a defesa e a proteção da sua extensa costa litorânea, o Poder Legislativo castrará, do Estado brasileiro, a sua soberania, primeiro princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º). 

Um Estado é soberano se, ao exercer a sua finalidade – o bem comum –, ele representa um poder que não depende de nenhum outro poder, nem é igualado por nenhum outro dentro do seu território.  

Note-se que, até para se levar a cabo o desenvolvimento social por meio da livre iniciativa, um dos argumentos favoráveis para a aprovação da PEC, a soberania não pode ser comprometida: é que ela também encabeça o rol de princípios gerais da ordem econômica (art. 170, I, da CF).

Aprovada a PEC, o STF, instado a se manifestar, deverá confirmar a soberania e a inviolabilidade das cláusulas pétreas, considerando o que decidiu no julgamento do Tema 676, de relatoria da ministra Rosa Weber: “a Emenda Constitucional 46/2005 não interferiu na propriedade da União, nos moldes do art. 20, VII, da Constituição da República, sobre os terrenos de marinha e seus acrescidos situados em ilhas costeiras sede de municípios”.

Em um Estado democrático de Direito, o princípio da participação reflete o natural anseio das pessoas de influir nas decisões de poder que repercutirão nos seus interesses, os quais foram por elas mesmas escolhidos e delineados amplamente no maior documento legislativo que se tem de um país: a Constituição Federal.   Essa democracia participativa possibilita aos indivíduos, no amplo exercício da cidadania, “não apenas escolher quem os governará, mas como querem ser governados”, na célebre lição do publicista francês Jean Rivero. 

É crucial, portanto, que o Ministério Público, ao qual incumbe, por imposição constitucional, a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, fiscalize a destinação dos valores arrecadados para os cofres federais frutos do foro e do laudêmio.

Tais valores devem ser destinados à prevenção de desastres naturais e para coibir os abusos por parte dos entes federativos e entidades privadas que impedem o povo de livremente circular pelas praias. 

A PEC das Praias é uma ofensa à soberania e aos direitos fundamentais, o que deve ser rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, se instado a se manifestar, e por nós, eleitores, nas iminentes eleições municipais.   

A praia, como entoa o rock, foi invadida há muito tempo. Mas pelo povo, a quem cabe aproveitá-la. A única invasão da qual o Brasil precisa é de humanismo, sem o qual está difícil viver.