Uma proposta anacrônica, desigual e antirrepublicana
O Congresso Nacional articula a retomada de uma antiga proposta que foi afastada pela Emenda Constitucional 35/2001: exigir licença prévia da Casa legislativa para que parlamentares federais, estaduais e distritais possam ser processados criminalmente. A ideia, que parecia sepultada, retorna num momento sensível, no qual a imagem das instituições depende justamente de maior transparência e responsabilidade pública.
Essa articulação ganhou força e nesta terça-feira (16/9) a Câmara dos Deputados aprovou a PEC 3/2021 que, no Substitutivo Reformulado da Comissão Especial, prevê a alteração dos parágrafos do artigo 53 da Constituição para, entre outras coisas, (i) a retomada da improcessabilidade de parlamentares, com a previsão de 90 dias para a Casa aprovar ou rejeitar a abertura da ação, por votação secreta de maioria absoluta; (ii) a retomada do voto secreto para a deliberação da Casa sobre prisão em flagrante de crime inafiançável; (iii) a previsão de foro perante o Supremo Tribunal Federal aos presidentes nacionais de partidos políticos com representação no Congresso.
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Durante a sessão presencial, a presidência – em uma tentativa de garantir os três quintos necessários para aprovação de PEC, depois de um requerimento para retirada de pauta da proposta ter sido rejeitado por apenas 266 votos – permitiu que não apenas a votação, mas também o registro de presença ocorresse de maneira virtual, em inobservância ao disposto no Ato da Mesa 154, de 10 de fevereiro de 2025.
Após a discussão, o Substitutivo foi aprovado em primeiro turno por 353 votos favoráveis, 134 contrários e 1 abstenção. Quebrado o interstício de cinco sessões previsto regimentalmente para votação de PEC, esta foi imediatamente apreciada em segundo turno, sendo aprovada por 344 votos favoráveis e 133 contrários. Em Destaque para Votação em Separado do partido Novo, a expressão “secreta” foi suprimida do § 3º do artigo 53 (licença). Dois outros destaques serão apreciados na sessão seguinte, nesta quarta-feira (17/9).
A PEC aprovada pela Câmara dos Deputados, todavia, é inaceitável, pois possui graves vícios materiais de inconstitucionalidade. Em outras palavras, a PEC é inconstitucional desde a sua origem, por violar cláusula pétrea da Constituição de 1988 e não poderia sequer ser objeto de deliberação. Ao Senado, portanto, não cabe buscar versões do texto supostamente mais “palatáveis”, mas sim rechaçá-lo por completo, por inconstitucionalidade.
A inconstitucionalidade do Substitutivo aprovado pela Câmara é patente ainda que o texto se aproxime da redação original da Constituição. Os constituintes, humanos que são, não podem prever o comportamento dos agentes diante das regras institucionais, sendo, por isso mesmo, a correção de eventuais equívocos uma das tarefas do poder reformador. Foquemos, pois, na improcessabilidade, seu desvirtuamento e sua correção pela via democrática.
A volta da licença prévia: retrocesso institucional e impunidade garantida
A tentativa de restaurar um privilégio processual penal é ultrapassada, antirrepublicana e profundamente desigual. É ultrapassada porque foi prevista como um mecanismo de freio e contrapeso a um possível abuso do Poder Judiciário frente aos mandatos parlamentares. A prática constitucional, no entanto, mostrou-nos que a previsão constitucional do § 1º do artigo 53 foi usada exatamente de modo inverso. Em vez de servir de freio a eventuais abusos do Judiciário, passou a servir de escudo contra a aplicação da lei e de instrumento de impunidade aos parlamentares que cometiam crimes.
A polícia percebeu, o Ministério Público percebeu, o STF percebeu, a população percebeu. Caso notório foi a impunidade no assassinato de Márcia Barbosa de Souza, decorrente da negativa, por duas vezes, da Assembleia Legislativa da Paraíba para a instauração de processamento criminal contra um então deputado estadual. Submetido ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos em 2000, o caso levou, anos mais tarde, à 10ª condenação brasileira na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso 12263).
Em 2001, o Congresso teve de reformar a Constituição. E, assim, fez o que se espera que os representantes do povo façam: estejam atentos ao adequado funcionamento das instituições de persecução penal (polícia e MP), à competência decisória e julgadora do Judiciário (e, no caso dos parlamentares, do STF) e aos reclamos de nós, cidadãos e cidadãs; sejam republicanos no trato de seus cargos e prerrogativas; sejam igualitários no tratamento com o povo e com os seus pares; e estejam – como todos estamos – submetidos às leis.
Retomar a antiga previsão da Constituição de 1988 em pleno 2025, às portas das eleições de 2026, depois de uma experiência negativa e desastrada já devidamente retificada, viola o princípio democrático (art. 1º, § único, CRFB) e a separação de Poderes (art. 2º, CRFB).
Hoje, há na Constituição uma possibilidade de controle de eventual processo criminal que as Casas legislativas entendam como abusiva: depois de recebida a denúncia contra senador ou deputado, por crime ocorrido após a diplomação, a Casa legislativa pode – segundo o teor do § 3º do artigo 53 – sustar o andamento do processo criminal, mediante pedido de iniciativa de partido político nela representado e pelo voto de maioria absoluta.
Desde 2001, a Câmara sustou um único processo: a Ação Penal 2668, que envolvia Alexandre Ramagem. De 1988 a 2001, dentre centenas de pedidos formulados, a Câmara não concedeu mais de duas licenças prévias, e o Senado, nenhuma.[1]
A tentativa de restaurar a exigência de licença prévia recoloca a condição de parlamentares como sujeitos absolutamente protegidos da persecução penal. Vale dizer: mesmo se houver fundada suspeita de que deputados ou senadores cometeram crimes, a ação penal contra eles não se iniciaria sem que a Casa legislativa respectiva autorizasse.
Isso coloca nossos representantes em uma condição superior e imune à persecução penal pelo simples fato de serem ocupantes de cargos eletivos e representantes do povo. Em vez de serem mais republicanos, menos encastelados, sem privilégios exclusivos em razão do cargo, eles se tornam mais aristocratas, mais distantes do povo, e menos afetos à lei penal. Há, aí, uma violação direta ao princípio republicano (art. 1º, CRFB).
A PEC 3/2021 é também profundamente desigual, porque alça os representantes do povo a uma condição especial de pessoas menos sujeitas à persecução penal. Mas, como representantes, eles não deveriam ser exatamente iguais a nós, representados?
Afinal de contas, as proteções do mandato já existem: a inviolabilidade, civil e penal, por suas opiniões, palavras e votos (art. 53, caput, CRFB); a impossibilidade de serem presos, salvo em flagrante de crime inafiançável (e, por garantia da função jurisdicional, para cumprimento de pena por sentença transitada em julgado) (art. 53, § 2º, CRFB); o foro por prerrogativa de função (art. 53, § 1º, CRFB); e demais garantias previstas no artigo 53 da Constituição. A PEC viola o direito fundamental de igualdade (art. 5º, caput, CRFB).
O sistema democrático pressupõe que todos – inclusive os representantes eleitos – estejam sujeitos à investigação pelas autoridades competentes. Criar barreiras corporativas como essa significa reforçar a percepção de que parlamentares estão acima da lei. Isso fere a confiança pública nas instituições.
Cinco cláusulas pétreas ameaçadas
A PEC em discussão parece ser em tudo incompatível com as cláusulas pétreas da Constituição. Temos ao menos as seguintes aparentes violações:
- Separação de Poderes (art. 60, § 4º, III, CRFB): ao condicionar a atuação da polícia, do Ministério Público e do Judiciário (em especial do STF) à autorização do Legislativo, recria-se uma barreira indevida de um Poder sobre outro.
- Direito fundamental da igualdade (art. 5º, caput, CRFB): a medida cria um privilégio incompatível com o Estado democrático de Direito e transforma parlamentares em uma casta blindada.
- Devido processo legal e acesso à justiça (art. 5º, XXXV e LIV, CRFB): a proposta impede que a ação penal se inicie, paralisando as investigações e violando os direitos fundamentais das vítimas e sujeitos passivos dos possíveis crimes cometidos em verem a adequada persecução e tutela dos direitos violados.
- Princípio republicano (art. 1º, caput, CRFB): ainda que não esteja nominalmente entre as cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, o princípio republicano – que repudia privilégios, exige responsabilidade e igualdade – é reconhecido pela doutrina constitucional e pelo STF como cláusula pétrea implícita. A República não admite castas privilegiadas. Exigir autorização da Casa legislativa para o processamento criminal de parlamentares é frontalmente contrário ao princípio republicano. Não se trata apenas de retrocesso: trata-se de inconstitucionalidade grave.
- Dever do Estado Brasileiro de respeitar os compromissos assumidos pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais é signatário (art. 5º, § 2º, CRFB): a improcessabilidade tornará deficiente o ordenamento jurídico brasileiro, nos termos da decisão da Corte IDH no Caso Márcia Barbosa, de maneira a, novamente, dar “margem para decisões arbitrárias e corporativistas por parte do órgão legislativo”[2], em adoção de uma “garantia de repetição” do ocorrido, em afronta direta ao compromisso brasileiro de respeito aos direitos humanos.
- Nem tudo pode ser emendado. Rejeição pelo Senado, ou controle de constitucionalidade pelo STF
Caso a PEC 3/2021 siga adiante em seu trâmite, é cabível a impetração de Mandado de Segurança, por qualquer parlamentar no exercício do mandato, para sustar a tramitação da referida PEC por violação de seu direito líquido e certo ao devido processo legislativo (art. 5º, LXIX, CRFB; MS 24667, 2003).
Se a PEC for aprovada, o Supremo Tribunal Federal poderá ser chamado a decidir sobre sua compatibilidade com a Constituição por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade. A jurisprudência do STF já reconheceu que mesmo emendas à Constituição podem ser invalidadas quando violam cláusulas pétreas. E, como visto, há fundamentos substantivos para tanto.
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A PEC 3/2021, além de politicamente equivocada, é juridicamente inviável. Ela atinge o núcleo intangível da Constituição, que protege a separação dos Poderes, a igualdade e a responsabilidade dos agentes públicos. O STF já deixou claro que prerrogativas parlamentares não podem se converter em blindagem, traduzindo-se em inaceitável impunidade para aqueles que, segundo a Constituição, podem exercer livremente o seu mandato, mas devem fazê-lo com responsabilidade, de modo a preservar o decoro parlamentar.
A Constituição não tolera a tentativa de restaurar um privilégio do passado que já foi corretamente superado em 2001. Trata-se de um retrocesso institucional inaceitável que não deve passar incólume ao controle de constitucionalidade, seja nas próprias Casas parlamentares, seja perante o Supremo Tribunal Federal.
[1] Levantamento do g1 apontou que o Congresso, em mais de 250 pedidos de processamento criminal formulados entre 1988 e 2001, concedeu autorização apenas para um, o deputado Jabes Rabelo (LIMA, Kevin; SOARES, Gabriella. PEC da Blindagem: Congresso autorizou apenas um processo contra parlamentar entre 1988 e 2001. g1, 16 set. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/09/16/pec-da-blindagem-congresso-autorizou-apenas-um-processo-contra-parlamentar-entre-1988-e-2001.ghtml. Acesso em 17 set. 2025). Levantamento da Folha de S. Paulo entre 1991 e 1999 localizou também a autorização para processamento do deputado Davi Alves da Silva (COSSO, Roberto. Congresso protege parlamentares de ações. Folha de S. Paulo, 5 ago. 2001. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0508200109.htm. Acesso em: 17 set. 2025). Sendo um ou sendo dois, o número demonstra claramente o desvirtuamento do instituto.
[2] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C nº 435. Publicado em 7 nov. 2021, p. 37.