O avanço da PEC 45/2019 e sua recente aprovação na Câmara dos Deputados vem enfrentando críticas inflamadas, muitas desprovidas de fundamento. Há aqueles que bravejam por serem contra a ideia de reforma – seja por desconhecimento mais profundo da proposta ou por interesse em manter o status quo – e outros que legitimamente sugerem e apontam necessidades de melhorias no texto o que, aliás, espera-se que ocorra durante sua tramitação no Senado Federal.
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Dentre as críticas, chama atenção como o Pacto Federativo ainda é reiteradamente apontado como um empecilho. No Brasil, diferentemente de todos os demais países no mundo, temos a base tributária do consumo – que é única e indivisível – repartida entre os 3 setores da economia distribuindo-se a competência de cada um deles a um nível diferente da Federação: indústria (IPI) da União, comércio (ICMS) dos Estados/DF e serviços (ISS) dos Municípios/DF. Alega-se que este modelo deve ser mantido para garantir as autonomias dos entes e qualquer tentativa de mudá-lo afronta o pacto federativo.
Em primeiro lugar, a autonomia que se deve preservar é a financeira, uma vez que é ela que garante as demais – política e administrativa. A autonomia financeira compreende o poder de gerir e despender dinheiros e valores públicos de modo independente das demais esferas de governo, consistindo na capacidade de se auto financiar com recursos próprios. É dinheiro em caixa, independentemente da vontade dos demais e de qualquer condição.
A Constituição buscou garantir autonomia financeira através de dois mecanismos complementares: a divisão de competências impositivas e a partilha de receitas do produto arrecadado. Na prática, entes com baixa capacidade fiscal e frágil estrutura administrativa exercem suas autonomias financeiras exclusivamente por meio da partilha de receitas, como é o caso atual de mais de 3 mil municípios.
Ainda que a repartição de competências seja elemento relevante do nosso federalismo, ela não deve ser considerada insuscetível de alterações. Nosso sistema pressupõe o equilíbrio de receitas tributárias, conceito que não necessariamente implica a manutenção das competências impositivas da forma como eleita pelo constituinte originário, não havendo qualquer impeditivo – seja no texto constitucional ou na Jurisprudência do STF – para que sejam feitas as modificações pretendidas pela PEC 45.
Aliás, é o atual sistema de competências impositivas que fragmentou a base do consumo que fere o pacto federativo, afetando tanto a convivência harmônica quanto as autonomias financeiras dos entes: as normas locais não respeitam as normas gerais e conflitam entre si, os entes guerreiam pelas bases impositivas alheias, especialmente diante do crescimento da economia digital, a prática fratricida dos estados de conceder incentivos fiscais ilegais prejudicou a arrecadação geral do ICMS, própria e dos demais, enquanto a União incrementa suas receitas com contribuições sociais não partilháveis, prejudicando o equilíbrio do produto arrecadado.
Vale lembrar que embora existam outras técnicas para se tributar o consumo, a incidência sobre o valor agregado tem se mostrado a forma mais utilizada no mundo, dotada de eficiência e neutralidade. Dentre os modelos possíveis de IVA, tem-se que ele pode ser gerenciado autonomamente pelos entes, centralizado na União ou, por fim, uma junção das duas anteriores, materializada na convivência de dois IVAs, um federal e outro subnacional. Esta terceira opção, o chamado “IVA dual”, é a que foi adotada pela PEC 45, afastando-se a crítica de que a União teria ingerência sobre a competência dos demais entes.
Ressalte-se que diversas federações adotam o IVA unificado sem que isso afronte a autonomia dos entes subnacionais. Identificamos ao menos 30 países no mundo que adotam a forma federativa de Estado, dos quais (i) apenas 2, Canadá e Índia, utilizam o IVA dual; (ii) ao menos 16 possuem IVA unificado, quais sejam: Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Emirados Árabes, Etiópia, México, Nepal, Nigéria, Paquistão, Rússia, Sudão, Suíça e Venezuela; e, por fim, (iii) 5 utilizam o Sale Tax: Comores, Estados Unidos, Iraque, Malásia e Sudão do Sul. Os demais não tributam o consumo.
O federalismo é compatível com o modelo IVA pretendido pela PEC 45. A forma federativa não contempla um modelo único e acabado de descentralização: cada qual é dotada de atributos e traços próprios, passíveis de ajustes e evoluções. Sampaio DÓRIA já lecionava que o conceito de Federação não é estático, cristalizado, mas “sensível a flutuações nas estruturas políticas e econômicas de cada nação, modelando o grau das autonomias recíprocas e a extensão de suas competências segundo variáveis ocorrentes em cada etapa de sua história”.
Está na hora dos defensores do Pacto Federativo brasileiro admitirem a falência do modelo atual e se posicionarem propositivamente a favor da adoção do IVA Brasil, permitindo que o debate evolua para questões mais pragmáticas e de extrema relevância como, por exemplo, a governança do Conselho Federativo, órgão responsável pela gestão do IBS, o IVA subnacional que será compartilhado por Estados e Municípios e a unificação das regras deste imposto com a CBS, de competência da União.
Isto porque o IVA dual da PEC 45 é composto pelo IBS, de competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios e CBS, de competência exclusiva da União. Nos termos do art. 149-B, os dois tributos obrigatoriamente terão: (a) os mesmos fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos; (b) as mesmas imunidades; (c) os mesmos regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; e (d) as mesmas regras de não cumulatividade e de creditamento.
Quanto ao IBS, o art.156-B da proposta prevê a criação do Conselho Federativo, composto pelos Estados, Municípios e Distrito Federal, responsável pela arrecadação do imposto e distribuição das receitas devidas a cada ente. Essa entidade operará sob regime especial e terá independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira. Também lhe competirá a administração compartilhada e integrada do IBS no que se refere à edição de normas infralegais, bem como à uniformização e à interpretação da legislação e a resolução do contencioso administrativo tributário entre a administração tributária e o sujeito passivo do IBS.
Aqui vale exercitarmos a análise crítica propositiva que tanto faz falta ao debate. Se o Conselho Federativo editar normas infralegais interpretativas atinentes ao IBS de forma diversa daquelas exaradas pela Receita Federal quanto à CBS, teremos um descompasso entre os dois tributos cuja promessa inicial era que fossem idênticos, pois não há previsão de como será operacionalizada a harmonização interpretativa e os procedimentos afetos àquelas espécies tributárias.
Não é demais lembrar que um dos fundamentos ressoados em prol da Reforma Tributária – e mais aguardados pelos contribuintes e aplicadores do direito – é a simplificação das regras sobre a tributação do consumo, especialmente pela unificação dos atuais tributos e harmonização da normatização, interpretação e procedimentos a eles atinentes.
O problema, contudo, vai além das competências interpretativas do Conselho Federativo, pois da leitura dos arts. 156-A e 195, inciso V e § 15, não é possível concluir que IBS e CBS serão regulados na mesma lei complementar. Caso os dois tributos venham a ser instituídos por leis distintas, teremos um ainda maior desalinhamento na regulação e nos procedimentos afetos ao IBS e à CBS.
No que concerne, ao contenciosa judicial, eis alguns pontos à serem debatidos visto que embora se tenha proposto uma nova competência para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos termos do art. 105, inciso I, alínea “j”, o desenho normativo da PEC 45/2019 não indica um tribunal específico para julgamento conjunto das controvérsias acerca do IBS e CBS entre sujeito passivo e administração tributária. Da forma como está o texto, a CBS será de competência da Justiça federal e o IBS será da competência da Justiça estadual. Mais uma razão para temermos.
Dessa forma, entende-se que um caminho que mitigaria o risco de desalinhamento do contencioso judicial do IBS e CBS, prestigiando a distribuição de competência para os Poderes Judiciários da União e dos Estados, é estabelecer, na lei complementar reguladora dos referidos tributos, a competência concorrente da Justiça Federal e da Justiça Estadual para julgar as controvérsias entre o sujeito passivo e a respectiva administração tributária da CBS ou do IBS, com a regra de prevenção por contingência ao juízo que primeiro tomar conhecimento dos fatos relativos a estes tributos.
Outro aspecto importante no que tange ao Conselho Federativo diz respeito a regulamentação do controle externo de receitas públicas e renúncia de receitas. Nos termos do art. 156-B, § 2º, IV, o controle será exercido pelos Poderes Legislativos dos entes federativos com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e dos Conselhos de Contas dos Municípios, que atuarão de forma coordenada, a ser regulada em lei complementar.
Por outro lado, não ficou definido qual será o órgão responsável por julgar as contas dos administradores do Conselho Federativo, apreciar denúncias e representações, nem tampouco fica claro como se dará esse controle coordenado, especialmente diante da autonomia e independência dos órgãos legitimados ao controle previstos na PEC. Tais definições são de suma importância para a eficiência da gestão fiscal, preservação da equidade, transparência das contas públicas e garantia de acesso a informações de melhor qualidade à sociedade.
O art. 71 da Constituição de 1988 delineia o controle externo federal, definindo, entre outros temas, o órgão de julgamento das contas dos administradores públicos (inciso II), a iniciativa e legitimados para requerer a realização de auditorias (inciso IV) e o poder sancionatório (inciso VIII). De forma reflexa e com supedâneo na coesão do texto constitucional, a PEC 45/2019 deveria definir minimamente o desenho do exercício do controle externo, notadamente o órgão responsável por exercer as competências previstas no art. 71 da CF/88.
Logo, no intuito de contribuir para uma governança efetiva e transparente do Conselho Federativo, verifica-se a necessidade de definir um arranjo institucional também de natureza interfederativa, de modo semelhante à inovação que o Conselho Federativo representa. A criação de órgão colegiado dos tribunais de contas para realizar as competências mencionadas é recomendada.
Vivemos, na atual conjuntura, um cenário de disputas políticas e de guerras fiscais e quando se trata de mudanças como é o caso do novel sistema tributário advindo com a PEC 45/2019, precisamos ter “boa-fé” e buscar soluções para projetar os desafios em prol da simplicidade da segurança jurídica.
Este artigo é parte integrante da série “A reforma tributária por elas”. A série, sob a coordenação de Luiza Leite, faz parte do projeto “Mulheres no Tributário”.