O Brasil abriga mais de 3.000 unidades de conservação (UC), segundo dados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC). Instrumento fundamental da política ambiental brasileira, essas áreas protegidas são instituídas pelo Poder Público para assegurar a conservação da biodiversidade e garantir serviços ecossistêmicos essenciais, como a regulação climática, a provisão de água potável, a purificação do ar e o controle de processos erosivos.
A sua criação está prevista expressamente na Constituição Federal (artigo 225, § 1º, inciso III), que estabelece que essas áreas não podem ser utilizadas de modo que a integridade dos atributos ambientais que justificaram a sua proteção seja comprometida. Além disso, a Lei Federal 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC), regulamenta a proteção e uso desses espaços.
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Apesar da sua importância, muitas dessas áreas existem apenas no papel, permanecendo por longos períodos sem adequada regularização e implementação. A atuação estatal para assegurar a consolidação territorial desses espaços – com a desapropriação de áreas privadas ou a regulação da posse e uso por populações tradicionais –, bem como para garantir a sua adequada gestão, não tem sido efetiva.
Em 2015, o Tribunal de Contas da União (TCU) usou o termo “parques de papel” para descrever essa realidade, alertando que muitas dessas áreas, embora formalmente estabelecidas, não estão aptas, na prática, a atingir os seus objetivos ambientais (Acórdão 1206/2015).
Evidentemente, esse problema compromete não somente a integridade dos ecossistemas brasileiros, mas também a capacidade do país de cumprir as metas internacionais de criação de áreas protegidas. É o caso das Metas de Aichi, que preveem o dever de criação de áreas protegidas sobre 17% das áreas terrestres e 10% das áreas marinhas e costeiras.
Mais recentemente, a Decisão 15/4 do Marco Global da Biodiversidade Kunming-Montreal ampliou tal compromisso para que as nações signatárias protejam ao menos 30% das áreas terrestres e marinhas do planeta até 2030 – meta que só será atingida com áreas efetivamente protegidas e bem manejadas.
Na Amazônia, a situação é especialmente preocupante, já que unidades de conservação que só existem no papel podem ser usadas para justificar a fragilização das normas de proteção ambiental vigentes. A Lei Federal 12.651/2012 (Lei de Vegetação Nativa), em seu artigo 12, § 5º, permite que os estados amazônicos autorizem a redução da porcentagem de reserva legal das propriedades privadas de 80% para até 50%, caso mais 65% da área estadual esteja coberta por unidades de conservação de domínio público “devidamente regularizadas” e por terras indígenas homologadas.
Estados como Roraima já vêm autorizando essa redução de reserva legal (Lei Complementar Estadual 323/2022), mesmo diante da falta de informações suficientes para que a regularidade das unidades de conservação no estado seja atestada.
A falta de previsão clara e específica de critérios normativos que definam o que configura uma unidade de conservação regularizada abre brechas para interpretações equivocadas e fragiliza o controle ambiental. Embora o conceito de “unidades de conservação devidamente regularizadas” seja empregado pelo ordenamento jurídico para autorizar a redução de reserva legal na região amazônica, ele não é detalhado nem na Lei de Vegetação Nativa, nem em outros diplomas normativos. Assim, faz-se necessário um exercício de interpretação sistemática da legislação nacional para compreender os critérios que devem ser observados para avaliar a regularidade de uma unidade de conservação.
Diante desse cenário, o documento Regularização das Unidades de Conservação: sistematização dos requisitos normativos e diretrizes para a garantia de adequada implementação e gestão, lançado recentemente pela Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), ajuda a suprir tal lacuna. Partindo de uma análise sistemática das normas em vigor, a publicação traça, de forma clara, os requisitos para que uma unidade de conservação possa ser considerada regular.
O documento destaca elementos imprescindíveis para que as unidades de conservação sejam geridas de acordo com as suas finalidades e limitações, como, por exemplo, a existência de um conselho gestor em funcionamento e de um plano de manejo adequado, sendo essencial também o envolvimento das populações locais no processo de gestão.
Além disso, é fundamental preservar as condições do território para que ele atinja os seus objetivos, o que depende da adequação das áreas contíguas à unidade de conservação, da demarcação e sinalização dos seus limites e da regularização fundiária da área – talvez o maior desafio atual para o processo de regularização dos espaços protegidos.
Observadas as limitações de uso e ocupação das unidades de conservação definidas em lei, também há uma série de atividades que podem ser realizadas nesses espaços, que incluem visitação, pesquisa, monitoramento da biodiversidade e, em alguns casos, até mesmo atividades de exploração florestal.
É importante que a execução dessas atividades seja fiscalizada e monitorada quanto à sua adequação e legalidade. Outro aspecto que merece atenção diz respeito à infraestrutura básica e aos recursos humanos e financeiros necessários para as ações de gestão e de consolidação territorial e para as atividades de fiscalização e outras cabíveis nas unidades de conservação.
Por fim, é fundamental a disponibilização e transparência de informações sobre as unidades de conservação para que a sociedade possa conhecê-las e atuar efetivamente em sua defesa, verificando a sua regularidade. O CNUC deveria apresentar dados sobre a situação fundiária, recursos hídricos, clima, solos, espécies ameaçadas de extinção presentes na área, zonas de amortecimento, corredores ecológicos e outros aspectos socioculturais e antropológicos, além de informações sobre o plano de manejo, o conselho gestor, as atividades de fiscalização, visitação e pesquisa em andamento, a infraestrutura local e os servidores e recursos financeiros alocados anualmente (artigo 50, parágrafo único, SNUC).
Hoje, porém, o cadastro nem sequer fornece uma lista de todas as unidades de conservação brasileiras. De maneira geral, as informações disponíveis são escassas e desatualizadas, principalmente no caso das unidades de conservação municipais.
Diante da importância ecológica das unidades de conservação, a inefetividade das normas que regulamentam a sua implementação no Brasil evidencia os imensos desafios enfrentados pela política de proteção ambiental brasileira.
O cumprimento das metas climáticas e de proteção da biodiversidade nacionais não será possível sem maior atenção às unidades de conservação do país. Combater os “parques de papel” e assegurar o futuro dos biomas brasileiros depende de uma atuação articulada do Ministério Público, da sociedade civil e da cooperação entre todos os níveis de governo – federal, estadual e municipal.