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Para entender o 8 de janeiro, é preciso compreender a nova direita jurídica brasileira

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O 8 de janeiro de 2023 está prestes a completar um ano. A tentativa de golpe vinha sendo alimentada há anos por discursos do ex-presidente contra as instituições democráticas. O Estado de Direito sempre esteve na mira de Jair Bolsonaro. Muitos deram-lhe pólvora.

O mundo do Direito não ficou alheio a essa movimentação. Tem se celebrado amplamente a oposição de juristas aos arroubos autoritários do capitão reformado, mas pouco tem se falado do apoio tácito ou manifesto que outros tantos ofereceram. Formando uma nova direita jurídica, associações, autores e editoras mobilizaram conhecimentos acadêmicos para fornecer uma retórica instrumental às bravatas e aos planos do ex-presidente. Essa rede, que vai além da conhecida figura de Ives Gandra Martins, é uma importante engrenagem do movimento bolsonarista.

Suas ideias dialogaram intimamente com bandeiras de Bolsonaro. Por exemplo, invocando o artigo 142 da Constituição Federal, aventou uma teratológica “intervenção militar constitucional”. Abusando do conceito de ativismo judicial, deu a deixa para a tese da existência de uma “ditadura do STF”. Questionando o papel contramajoritário da corte constitucional, aproximou-se da noção tóxica de que “as minorias têm que se curvar às maiorias”.

Esse ideário não foi forjado à margem do Direito. Gente do ramo ajudou a construí-lo e propagá-lo. Para compreender a atuação dessa direita jurídica na esfera pública, é preciso relembrar dois episódios reveladores da peculiaridade desse grupo, um antes e outro depois do 8 de janeiro.

A outra carta

11 de agosto de 2022. Sob holofotes, a antiga Faculdade de Direito da USP testemunhava a leitura pública da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros pela Democracia”. O projeto fora concebido como uma manifestação de juristas em resposta às ameaças de Bolsonaro contra a justiça eleitoral.

A Carta estava envolta em uma aura de civismo. Em discurso naquele 11 de agosto, José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, exortava para que se colocassem velhas divergências políticas de lado, em nome da união pela democracia. Clamava-se para que toda a comunidade jurídica denunciasse os intentos golpistas do então chefe de Estado.

Seria isso possível?

Mesmo Brasil, mesma época. Um grupo de advogados também resolve lançar uma carta pública para se posicionar politicamente. Esse outro manifesto, tal qual o da USP, dizia que o poder emana do povo e por ele deve ser exercido. Também abraçava a concepção da imperatividade da proteção aos direitos fundamentais. O título do abaixo-assinado – “Manifesto à Nação brasileira” – é quase um genérico da carta lida na USP.

Qual a diferença, afinal?

Simplesmente o fato de que o segundo manifesto não se opunha à presidência então vigente; respaldava-a com orgulho. Pontificava, ainda, um lema protointegralista – “Deus, Pátria, Família e Liberdade” – e um slogan bolsonarista, com leve modificação – “Deus seja Louvado. Brasil acima de Tudo”. Era uma reação à primeira Carta. Era um lembrete incômodo de que havia, sim, amplas camadas de profissionais jurídicos pró-Bolsonaro.

O libelo, como a Carta da USP, alcançou 1 milhão de assinaturas. Mesmo que o número de adesões possa ter sido inflado de maneira fraudulenta, não se pode negar a magnitude do alcance desse panfleto bolsonarista.

O manifesto ostentava, como idealizador, um desconhecido “Movimento dos Advogados de Direita (ADBR)”. Pesquisando a respeito, descobre-se que a fundação dessa associação não foi um fenômeno isolado nos últimos anos. Organização análoga é a autointitulada “Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil (OACB)”.

O nome da “OACB” é sintomático do ideário da nova direita jurídica. Por um lado, imita a sigla de uso privativo da Ordem dos Advogados do Brasil. Por outro, rejeita a legitimidade do órgão de classe da advocacia no país. O nome da associação tenta nos convencer da impossibilidade de conservadores serem ouvidos e influírem na OAB, o que está longe de ser verdade.

Ora, o adjetivo “conservadores” em “OACB” só pode remeter a um novo tipo de direita. Ou melhor, a uma nova direita, intimamente ligada ao bolsonarismo. Não uma velha direita conservadora ou moderada , mas uma extrema direita ou uma direita radical. Uma direita que não admitiu que o presidente do Conselho Federal OAB da época, Felipe Santa Cruz, criticasse medidas de Bolsonaro.

Um contrapúblico jurídico de direita

A maior peculiaridade dessa direita jurídica emergente é o fato de se conceber como um contrapúblico. Nas ciências sociais, tal conceito descreve setores que contestam o mainstream, que rechaçam os limites dos discursos hegemônicos na esfera pública.

Esses grupos não são, necessariamente, marginalizados. Também são contrapúblicos aquelas comunidades que percebem seus discursos e valores como divergentes das ideias vicejantes na esfera pública, mesmo que as visões desses grupos não sejam tão periféricas na realidade. É precisamente o que se nota na “OACB”: seu nome alardeia um antagonismo peremptório à Ordem, fugindo de qualquer ponderação sobre o histórico de posições políticas conservadoras que a entidade já teve.

Conforme Rocha e Medeiros, o método da atuação dos contrapúblicos consiste no uso “do choque intencional, do recurso à performatividade disruptiva e da transgressão de normas de decoro, os quais podem ser utilizados de forma consciente como uma estratégia política contra-hegemônica radical”.

Não surpreende, pois, que a direita jurídica contrapublicística tenha flertado com um golpe de Estado; que seu estilo tenha inspirado os participantes dos atos de 8 de janeiro… e seus defensores.

Da tribuna, contra o tribunal

“Senhores (…), nessas bancadas aqui, (…) estão as pessoas mais odiadas deste país.”

Não se imaginaria, há algum tempo, que essa frase teria sido proferida justo contra o Supremo Tribunal Federal, instituição distante do foco da imprensa até o início deste século. Em 23 de setembro de 2023, Sebastião Coelho, desembargador federal aposentado e advogado do primeiro réu a ser julgado pelos crimes dos atos de 8 de janeiro, gastou seu tempo de sustentação oral para fazer diatribes contra a corte que julgaria o seu cliente. Optou por chocar, ao arrepio de seu dever de ofício.

É perigoso conceber a postura de Coelho como mera crítica ao STF. Criticar a corte se tornou um esporte nacional. O comportamento de seus ministros, seus procedimentos, julgados e inquéritos nunca foram tão escrutinados e, com toda a razão, questionados na imprensa. Todavia, por impiedosas que sejam, as críticas à atuação recente do STF feitas em balizas liberais, progressistas ou conservadoras – mas não extremistas – cumprem com o decoro do debate público. Em contraste, o contrapúblico jurídico de direita pátrio costuma fugir desse fair play intelectual.

Um alerta

A tática do advogado ilumina o modus operandi da direita jurídica bolsonarista: sua performance indecorosa e bélica, sua caracterização do STF como um inimigo a ser odiado, seu desapreço por tradicionais espaços de debate jurídico, como a OAB e as universidades. Entretanto, autores dessa mesma direita por vezes se apropriam, com distorções e exageros, de discussões antigas e conceitos consagrados no meio jurídico, como “ativismo judicial” e “supremocracia”. Também apelam para a ideia de direitos humanos. É um modo de reivindicar cidadania intelectual aos seus posicionamentos extremados, buscando legitimá-los.

Saibamos discernir esse ardil das tantas objeções necessárias e urgentes ao STF. Minimizar ou banalizar a arenga de Coelho e colegas como apenas mais uma crítica ao tribunal é um risco. O Brasil normalizou por anos uma caricatura de extrema direita na televisão e nas mídias sociais. O 8 de janeiro nos lembra a catástrofe a que isso nos levou.