No Acórdão 886/2025, de 23 de abril de 2025, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) julgou caso envolvendo pagamento antecipado em contrato administrativo para aquisição de 300 ventiladores pulmonares durante a pandemia de Covid-19. Apesar do pagamento integral, os equipamentos não foram entregues.
O TCU concluiu que a antecipação ocorreu sem mecanismos de salvaguarda diante do inadimplemento. Diante disso, apreciou (i) a possível responsabilização dos gestores públicos, afastada por maioria de votos, e (ii) a responsabilidade do particular contratado, cuja apuração foi remetida a tomada de contas especial.
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Deixando de lado as particularidades da situação examinada, cabe observar que o voto revisor do ministro Bruno Dantas, seguido pela maioria, notou as dificuldades da administração pública para “responder, com rapidez, aos desafios de uma situação extraordinária, se todo o ferramental administrativo disponível foi desenvolvido para tempos de estabilidade”.
Concluiu-se que, “em situações excepcionais como a que se coloca, pode não ser possível percorrer todos as regras de controle e bom procedimento, plenamente recomendáveis em momentos de normalidade, mas, a depender do caso, completamente descoladas de uma realidade extraordinária”.
Esses fatores foram enquadrados como “obstáculos” e “dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas” relativamente ao enfrentamento da pandemia (art. 22, caput, da LINDB), o que fundamentou o entendimento de que “não poderia a jurisprudência formada em situações de estabilidade (…) ser aplicada a momentos excepcionais”.
Embora trate de caso específico, a decisão é relevante porque revela tratamento excepcional em vista da jurisprudência do próprio TCU, que já qualificou como erro grosseiro a antecipação de pagamento sem a adoção de cautelas para lidar com o inadimplemento.[1]
No caso em exame, não houve previsão de garantias ou outros mecanismos para lidar com o risco de inadimplemento. Ainda assim, diante do contexto então emergencial e do notório desequilíbrio entre oferta e demanda dos equipamentos no mercado, o TCU concluiu que teria restado caracterizada a inexigibilidade de conduta diversa por parte dos gestores públicos. Afastando dolo ou erro grosseiro, reconheceu a impossibilidade de “sanção para o mero erro”, conforme o art. 28 da LINDB.
Além de ilustrar a aplicação da LINDB à gestão contratual, a decisão é útil também para compreender a aplicação da sistemática de pagamentos antecipados sob a Lei 14.133/21.
A regra principal está no caput do art. 145 da Lei 14.133/21: “não será permitido pagamento antecipado, parcial ou total, relativo a parcelas contratuais vinculadas ao fornecimento de bens, à execução de obras ou à prestação de serviços”.
Embora essa norma pareça ter natureza de regra (vedação) absoluta, ela constitui mais uma diretriz – que, como tal, pode ser excepcionada. O § 1º do art. 145 estabelece duas situações alternativas em que o pagamento antecipado pode ser adotado: “se propiciar sensível economia de recursos ou se representar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço”.
Ou seja: a Lei 14.133/21 admite a formatação de arranjos de remuneração adequados às circunstâncias concretas. A emergência de aquisição, a escassez de oferta ou as características próprias de determinado mercado (pense-se, como exemplo, em contratações internacionais para aquisição de bens ou insumos especiais) podem constituir fundamentos aptos a justificar o desembolso do valor contratado antes do recebimento do objeto.
Significa dizer que a questão não é determinar se o pagamento antecipado é possível ou não, mas como o será. E a Lei 14.133/21 também oferece resposta para tanto.
Em primeiro lugar, deve haver haver justificativa expressa no processo licitatório e previsão no edital ou no instrumento de contratação direta (art. 145, § 1º). O gestor público deve evidenciar, desde a fase pré-contratual, as razões “mercadológicas” (art. 18) e outros elementos que demonstrem a vantagem ou mesmo a imprescindibilidade do adiantamento para viabilizar a contratação.
Em segundo lugar, cabe efetuar a adequada estruturação da sistemática de remuneração. A antecipação opera uma antecipação do fluxo financeiro do contrato que, como tal, resulta em vantagem evidente ao contratado – e acarreta risco igualmente claro ao poder público. É necessário que a solução seja concebida de modo a equilibrar esses fatores.
Para tanto, cabe ao poder público demonstrar como gerenciará e buscará mitigar o risco em caso de inadimplemento da contraparte. A solução prevista no art. 145, § 2º, da Lei 14.133/21 é a exigência de “garantia adicional como condição para o pagamento antecipado”.
A exigência deve ser razoável e definida levando em consideração a garantia contratual que já se encontre vigente. Como regra, a garantia deve prover segurança ao poder público, mas os seus requisitos não podem resultar em custo que anule a racionalidade econômica da antecipação. A exigência de garantia não serve para aniquilar a vantagem da antecipação ao sujeito privado, mas para compatibilizá-la com a situação do ente público, dentro de uma lógica de gestão de riscos racional e proporcional.
Em outras palavras, trata-se de um jogo de soma positiva. De forma alternativa, não há impedimento a que outras salvaguardas sejam acordadas, como aquelas previstas no art. 1º, § 2º, da Lei 14.065/20, na medida em que se mostrem razoáveis e eficientes.[2]
Em terceiro lugar, já na execução contratual, cabe ao poder público concretizar o comando do art. 169 da Lei 14.133/21 e adotar “práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo”. Mediante práticas de fiscalização, deve acautelar o adequado cumprimento das obrigações que foram financiadas com o adiantamento.
Essas medidas são condições para a atuação adequada e eficiente, mas não eliminam, no momento do controle, a necessidade de apreciação das condições concretas de atuação do gestor.
De um lado, como o TCU definiu no Acórdão 886/2025, a motivação da solução, ainda quando tida como insuficiente, deve ser examinada sob a óptica da adequação concreta da solução administrativa diante da realidade.
De outro lado, as providências adotadas pelo gestor público devem mostrar-se vocacionadas a minimizar os riscos assumidos, mas devem ser vistas como obrigações de meio, não de resultado. Espera-se eficiência do gestor público, mas não a garantia de eliminação dos riscos inerentes à atividade contratual.
Ou seja, o inadimplemento do particular nesses casos não é condição suficiente para ensejar responsabilização dos agentes públicos. Em um cenário mais amplo, tanto as providências preventivas quanto as reativas ao inadimplemento (exigência de devolução do valor antecipado, aplicação de sanções etc.) devem ser levadas em consideração pelos órgãos de controle.
[1] Acórdão 185/2019-Plenário, Rel. Min. Benjamin Zymler.
[2] A norma foi editada para regular a antecipação de pagamentos no âmbito da pandemia de Covid-19 e admite, como cautelas para reduzir o risco de inadimplemento contratual: “I – a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente; II – a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 , de até 30% (trinta por cento) do valor do objeto; III – a emissão de título de crédito pelo contratado; IV – o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; ou V – a exigência de certificação do produto ou do fornecedor”.