A cada dois anos, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) inaugura uma nova agenda, pela qual o presidente espera ter sua marca reconhecida no futuro. Desde 2004, a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – órgão que vem se afirmando como regulador, não apenas do Poder Judiciário, mas de todo o sistema de Justiça – e a cumulatividade da presidência do STF com a presidência do CNJ, tem contribuído para dar institucionalidade às pautas do presidente do Supremo, para além do biênio de sua presidência, transformando a pauta do presidente do Supremo na pauta do Sistema de Justiça.
Com o ministro Luís Roberto Barroso não é diferente e, para tanto, ele elegeu a linguagem simples como uma de suas bandeiras nas Presidências do STF e do CNJ, na crença de que a “linguagem simples e breve pode revolucionar o Poder Judiciário”[1].
Para tanto, Barroso lançou o “Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples” com o objetivo de adotar a linguagem simples, direta e compreensível, cujos pressupostos são a acessibilidade e o aprimoramento das formas de inclusão. O Pacto se justifica na circunstância de que a linguagem técnica e a extensão dos pronunciamentos nas sessões não podem ser obstáculos à compreensão das decisões judiciais pela sociedade, uma vez que a boa técnica, aliada à clareza e à brevidade nas comunicações, são condições indispensáveis para a garantia do acesso à justiça[2].
A adoção da linguagem simples é um importante avanço de alta carga simbólica, que vem recebendo a pronta adesão de diversos tribunais. No entanto, essa abertura linguística simbólica constrói uma narrativa de ampliação do acesso e inclusão, que se contrapõe a um gravíssimo movimento retrocedente, de fechamento procedimental e restrição dos direitos de defesa das partes no processo decisório.
É paradoxal que, durante a mesma presidência que erige a bandeira da linguagem simples como instrumento de ampliação do acesso e inclusão da sociedade, observemos o cerceamento estrutural do direito de defesa com o veto a sustentações orais em agravos regimentais.
Esse movimento restritivo deve ser compreendido no contexto da crescente virtualização assíncrona dos julgamentos, no qual os julgamentos presenciais são, cada vez mais, a exceção excepcionalíssima. Em 2023, das 18 mil decisões proferidas pelo Supremo, apenas 96 foram em sessões presenciais, representando um percentual de 0,53 decisões presenciais para 99,47% de decisões virtuais assíncronas[3]. Em 2024, foram 7.750 decisões virtuais contra 70 decisões presenciais[4]. É paradoxal que a ampliação e abertura promovidas pela virtualização do processo decisório venha acompanhada pela restrição dos espaços participativos dos advogados nos julgamentos presenciais, cada vez mais excepcionais.
Em uma dessas 70 decisões presenciais, o ministro Alexandre de Moraes, na presidência da 1ª Turma, negou o exercício de sustentação oral em agravo regimental, com fundamento no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), que não prevê a prerrogativa de defesa oral das partes nesse momento processual (Rcl. 61.944).
Entretanto, a Lei 14.365/22 prevê expressamente o direito da parte à sustentação oral em agravo regimental. Não fosse suficiente o critério cronológico, incide também o critério de abertura procedimental, ou como muitos gostam de dizer, democratização do processo constitucional mediante a ampliação do direito ao exercício de defesa das partes, âmbito no qual o direito à defesa oral é cada vez mais cerceado e restrito. No entendimento do ministro presidente da 1ª Turma, o RISTF se sobrepõe à norma posterior e ampliativa do direito de defesa das partes no processo constitucional, em franca interpretação restritiva que promove um retrocesso procedimental das garantias fundamentais de defesa das partes no processo constitucional.
O incidente levou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Beto Simonetti, a declarar que apresentaria uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para tentar pôr fim a celeuma acerca do que vale mais: “o regimento de um tribunal ou o Estatuto da Advocacia, que é regido por uma lei federal, e é onde estão descritos todos os nossos direitos. O direito de que nós possamos, da tribuna sagrada, representar o povo brasileiro, retirando suas angústias, desfazendo as injustiças perpetradas contra o cidadão do Brasil”[5].
A mesma postura restritiva foi adotada pela maioria dos ministros em julgamento presencial do plenário do Supremo que, em recente decisão, entendeu-se que o amicus curiae não possui legitimidade para a oposição de embargos de declaração em recursos extraordinários com repercussão geral (RE 949.297 e RE 955.227). O voto de desempate foi proferido pelo ministro Presidente, que entendeu inadmissível os embargos declaratórios opostos pelos amici.
Para assim decidir, o Supremo afastou a literalidade do art. 138 do Código de Processo Civil (CPC), que prevê expressamente a legitimidade para a oposição de embargos de declaração pelos amici, e superou a sua própria jurisprudência que expressamente admitia a incidência da norma processual civil nos casos do controle incidental (RE 760.931 e RE 1.014.286). Para o Supremo, o julgamento de recursos extraordinários sob a sistemática de repercussão geral (controle incidental) seria regido pelas leis do controle concentrado de constitucionalidade, e não pelo CPC, em prol de uma unicidade axiológica dos subsistemas de controle de constitucionalidade e da especificidade de sua normativa.
Esse entendimento constitui um retrocesso procedimental em múltiplas perspectivas. Primeiro porque fixa interpretação restritiva do exercício do direito de defesa dos amigos da corte, fundada em um fictício hiper acionamento do tribunal pelos amici, que não encontra suporte empírico[6].
Segundo porque contraria precedentes específicos do plenário do Supremo, que reconheciam a incidência do Código de Processo Civil para admissão dos embargos de declaração opostos pelos amici curiae. Por último, mas não menos importante, porque desconsidera a contribuição fundamental que os amigos da corte têm oferecido historicamente para o desenvolvimento, pluralização e aperfeiçoamento da jurisdição constitucional.
Afigura-se contraditória a construção de uma narrativa de abertura linguística simbólica para a sociedade e a tomada de decisões restritivas dos direitos de defesa das partes no processo decisório, repercutindo estruturalmente no fechamento procedimental da jurisdição constitucional.
Essa dissociação entre a narrativa e a prática procedimental precisa ser apontada, sobretudo quando aquela vem sob a bandeira de tornar o processo decisório judicial mais acessível e includente. Acessível para quem?
O Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples é um avanço importante para tornar o direito mais acessível à sociedade, mas mostra-se ainda mais fundamental assegurar que o processo decisório continue acessível às partes, garantindo-se que seus advogados possam continuar a exercer o seu direito fundamental ao recurso e à sua voz, sob pena de graves retrocessos na marcha do processo constitucional.
Precisamos estar atentos e vigilantes para que iniciativas simbólicas de abertura linguística não mascarem movimentos estruturais de fechamento procedimental, em retrocessos que colocam em cheque uma visão democrática da jurisdição constitucional e da Justiça.
[1] Barroso, Luís Roberto. Linguagem simples e breve pode revolucionar o Poder Judiciário. Conjur de 22/05/2024. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2024-mai-22/linguagem-simples-e-breve-pode-revolucionar-o-poder-judiciario/>, acesso de 25/05/2024.
[2] Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf>, acesso de 24/05/2024.
[3] Das 18 mil decisões do Supremo no ano passado, apenas 96 foram dadas em sessões presenciais. Conjur de 24/05/2024. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2024-mai-24/das-18-mil-decisoes-do-stf-em-2023-apenas-96-foram-dadas-em-sessoes-presenciais/>, acesso de 24/05/2024.
[4] Corte Aberta. Dados disponíveis em <https://transparencia.stf.jus.br/extensions/plenario_virtual/plenario_virtual.html>, acesso de 25/05/2024.
[5] Veto a sustentações orais abre conflito entre o Supremo e a advocacia. Conjur de 24/04/2024. Disponível em <
[6] Dados da Corte Aberta indicam que os amici ingressam em 20% dos processos do controle concentrado de constitucionalidade (disponivel em <https://transparencia.stf.jus.br/extensions/controle_concentrado/controle_concentrado.html>, acessdo de 21/04/2024). Comparativamente, na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, os amici curiae estão presentes em 96% dos processos julgados pelo tribunal, sendo citados em mais de 65% dos votos proferidos pelos Justices (FRANZE, Anthony; ANDERSON, Reeves. Amicus Curiae at the Supreme Court: Last Term and the Decade in Review. The National Law Journal, nov. 2020).