Oversharenting e suas consequências

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No último mês de junho, a Justiça italiana concedeu ordem de urgência para impedir que a influenciadora digital Alice Pasti publicasse fotos e vídeos de sua filha Sole, de quase 4 anos, nas redes sociais. A decisão, que será reavaliada após uma audiência especial, foi motivada por uma queixa do pai da criança, que argumentou que a exposição contínua da menina nos ambientes virtuais colocava em risco sua segurança e bem-estar.

O pai destacou que pessoas salvavam os vídeos de TikTok da menina e que ela era reconhecida por estranhos em locais públicos. Além disso, alegou que algumas postagens eram “não espontâneas e adultizadas”. Alice, por outro lado, defende que as fotos e vídeos são naturais e não trazem qualquer risco à filha.[1]

No Brasil, a influenciadora Karoline Lima enfrenta processo semelhante. O jogador de futebol Éder Militão ajuizou ação representando a filha, Cecilia, de apenas um ano, com o objetivo de impedir a mãe, Karoline, de postar fotos e vídeos da menina em suas redes sociais.[2] A ação em questão insere-se em um contexto mais amplo de acusações recíprocas entre os pais de Cecilia, mas casos como esse tem despertado no Brasil e no mundo um amploo debate sobre os limites para exposição de crianças em redes sociais e o chamado oversharenting.

A expressão oversharenting nasce da junção das palavras em inglês “over” (excesso), “share” (compartilhar) e “parenting” (cuidado parental). Refere-se, como sua literalidade revela, ao hábito de pais que compartilham de forma muito frequente fotos, vídeos e informações sobre seus filhos nas redes sociais. A prática pode ser movida pelo desejo genuíno de compartilhar momentos de ternura, mas suscita riscos que não são banais.

Além dos perigos mais evidentes relacionados à segurança de crianças e adolescentes que têm detalhes de sua rotina, imagem e dados pessoais expostos em redes sociais, o oversharenting também levanta questões jurídicas relacionadas à tutela dos direitos da personalidade dos menores, que não têm ainda a idade ou grau de discernimento necessários para consentir validamente com a divulgação de suas imagens e informações. Por vezes, o sharenting começa ainda na fase gestacional, como se pode ver dos perfis em redes sociais criados para nascituros, que já acumulam milhares de seguidores.[3]

Há, ainda, sérias preocupações relacionadas ao impacto psicológico da superexposição sobre crianças e adolescentes. Especialistas apontam que a exposição excessiva pode gerar desconfortos, quebra de confiança da criança em relação aos seus cuidadores e, até mesmo, impactos na autoestima e saúde mental de crianças e adolescentes, especialmente quando o tipo de conteúdo divulgado dá margem para que a criança se sinta ridicularizada ou estereotipada.[4]

Nesse ponto é preciso lembrar que mesmo postagens aparentemente inocentes podem sair de controle e ter consequências amplificadas, produzindo, em última análise, um registro permanente que pode perseguir o indivíduo ao longo de toda sua vida.

Exemplo amplamente conhecido no Brasil foi aquele ocorrido ainda em 2012, quando um adolescente de 13 anos protagonizou um videoclipe com uma versão cômica da música “What makes you beautiful” do grupo One Direction. O videoclipe exibe, sempre com viés humorístico, fotos da vida do menino em viagens a Israel e à praia de Baleia, no litoral de São Paulo. O videoclipe foi postado no YouTube pelos próprios familiares do rapaz com o propósito de tomá-lo acessível a amigos e parentes distantes. Foi, contudo, descoberto pelos internautas e aquilo que era um vídeo aparentemente inofensivo tornou-se rapidamente um conteúdo “viral”, assim entendido aquele que se dissemina indistintamente até alcançar proporções descomunais.

A família pediu judicialmente a remoção do conteúdo e, depois de alguns revezes, obteve a ordem judicial pleiteada, mas até hoje é possível encontrar o vídeo na internet. O episódio marcou a vida do adolescente, que por algum tempo viveu recluso e sofreu assédios, como na ocasião em que, já adulto, foi chamado para uma entrevista apenas porque o entrevistador queria uma selfie com o protagonista do vídeo célebre.[5]

Não se pode subestimar as consequências da disponibilização de vídeos e imagens em redes sociais, especialmente em um momento em que a ampliação do acesso a ferramentas de Inteligência Artificial permite a manipulação digital e multiplica exponencialmente a capacidade de divulgação de conteúdos. Em uma sociedade hiperconectada e ameaçada pelas deep fakes, intensifica-se ainda mais a importância do debate em torno da proteção da imagem e da privacidade de crianças e adolescentes em ambientes virtuais.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente afirma, em seu artigo 17, que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. O artigo 18 do mesmo Estatuto acrescenta que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” (art. 18).

Ainda que o ECA não trate especificamente do oversharenting, não há dúvida de que a proteção concedida pelos artigos 17 e 18 do ECA engloba a superexposição de crianças e adolescentes em redes sociais. Isso não significa que os pais estejam terminantemente proibidos de postar fotos ou vídeos de seus filhos em suas redes sociais, como pessoas que integram sua família e seu cotidiano. O que se veda, em linha com a tutela constitucional da dignidade humana, é que crianças e adolescentes se convertam em objeto da atuação de outros sujeitos (no caso, seus pais).

Menores não podem, em nenhuma hipótese, se converter em instrumentos de satisfação do desejo pessoal de cada um em expor a própria vida em ambientes virtuais, seja com finalidade de lucro, seja por mero diletantismo. É o que se vê nitidamente em postagens que expõem menores ao ridículo, por meio de vídeos de birras, imagens de momentos de fragilidade ou ensaios fotográficos que colocam bebês artificiosamente em situações inusitadas com o propósito de fazer o público rir (dentro de vasos de flores, fantasiados de frutas, vestidos como pessoas idosas, e assim por diante).

Mas, afinal, qual a consequência do oversharenting? O remédio, naturalmente, pode ser drástico, como a emissão da ordem judicial que proibiu a influenciadora Alice Pasti de publicar fotos e vídeos de sua filha Sole em suas redes sociais. É preciso evitar, contudo, que o oversharenting se converta em instrumento facilmente utilizado por um dos pais para constranger, até mesmo judicialmente, o outro. Também nesta hipótese estaríamos diante da conversão do menor em mero objeto do interesse alheio, sem uma genuína intenção de proteger a criança ou adolescente.

Cada pessoa é inteiramente livre para decidir como se relacionar com os ambientes virtuais. Hábitos distintos não são razão para pleitear remédios como a transferência de guarda do menor ou a restrição de convívio com o genitor que, por uma razão ou outra, tenha uma vida mais exposta virtualmente. Todos têm o direito de compartilhar momentos de sua própria vida, mas, no caso de crianças e adolescentes, justamente porque ainda não tem o discernimento necessário para realizar essa escolha personalíssima, é preciso garantir que cresçam em um ambiente seguro e livre de exposições desnecessárias e potencialmente prejudiciais. O melhor remédio contra o oversharenting é, em suma, uma boa dose de consciência e maturidade.

[1]L’influencer stoppata dal giudice: ‘Basta immagini della figlia piccola sui social senza l’assenso del padre’” (Milano Corriere, 21.6.2024).

[2]Éder Militão entra com processo contra Karoline Lima em nome da filha” (Revista Quem, 15.6.2024).

[3]Viih Tube e Eliezer anunciam nome do filho; feto chega a 100 mil seguidores no Instagram” (CNN, 25.5.2024).

[4]Sharenting: por que você não deve postar fotos dos seus filhos nas redes sociais (mesmo de bebês)” (O Globo, 8.10.2023).

[5] Sobre o tema, vale conferir o episódio “O Menino do Bar Mitzvá” do podcast “Além do Meme”, apresentado pelo jornalista Chico Felitti e disponível na plataforma de áudios Spotify.