Há mais de três décadas fala-se do crescimento vertiginoso de adeptos das mais variações igrejas evangélicas no Brasil. Na década de 1990, aqueles que apontavam pra frente e diziam que o nosso futuro seria evangélico, eram desacreditados.
Hoje, mais forte e mais organizada, a comunidade evangélica é a religião mais presente, especialmente, entre os pretos, pobres e periféricas de todo país. A dimensão desse fenômeno silencioso, contudo, segue sendo negada pelo ranço intelectual e pelas esquerdas que, ora veem essas pessoas e suas pautas com desprezo, ora subestimam sua dimensão e sua capacidade de articulação.
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A direita, sobretudo a chamada nova direita, contudo, soube acolher essa comunidade de alguma maneira e consegue hoje com destreza instrumentalizar o potencial político desses grupos. E falo aqui no plural por que, a primeira coisa que precisamos reconhecer, frente à nossa ignorância do fenômeno, é que não existe uma comunidade evangélica no país, mas sim várias.
Com uma organização estrutural absolutamente avessa à hierarquia da Igreja Católica, a tônica junto às igrejas protestantes é a pluralidade e a horizontalidade destas instituições, o que tem facilitado sua pulverização pelos morros e quebradas.
São centenas de denominações e ramificações que se unem em favor do evangelismo, mas estão longe de se coadunarem em torno de uma agenda política homogênea. Por exemplo, só pra gente ter uma noção dos extremos, é sabido que há denominações que condenam a comunidade LGBTQIAPN+ à danação, enquanto outras, são grandes aliadas e aguerridas defensoras da causa.
Há aquelas que veem o dízimo como uma prestação pecuniária e aquelas que o entendem como uma oferta, da qual não se espera nada em troca. Algumas dessas igrejas oferece um protagonismo maior para as mulheres, outras, reforçam as opressões de gênero. Ou seja, não há qualquer unidade naquilo que chamamos de evangélicos e digo mais: insistir em tratar essas pessoas como um coletivo homogêneo não ajuda em nada a entender sua expansão, muito menos compreendê-las.
A rasa ignorância contra os grupos evangélicos reforça antagonismos, seja de um lado, seja do outro. A distinção do tipo “nós” e “eles”, aqui, mais fecha as portas, do que estabelece qualquer forma de diálogo. Essas pessoas não são uma manada de radicais fundamentalistas como querem nos fazer entender alguns críticos à esquerda. O eleitorado evangélico tem se tornado a cada pleito mais e mais importante, mas muito evangélicos que hoje voltam na direita, já voltaram na esquerda num passado muito recente.
Rotular esses grupos, desdenhá-los ou vê-los como inimigos empobrece nosso entendimento da realidade brasileira e do cenário político contemporâneo. Simplesmente, não se pode mais ignorar o peso e a dimensão desse mar de gente. Segundo dados do último censo, 47,4 milhões de brasileiros com mais de 10 se declara evangélico. 1 em cada 4 brasileiros é evangélico. Esse é o horizonte.
Assim como o carnaval, o futebol e a desigualdade são elementos constitutivos da formação social e política brasileira, o evangelismo agora também o é. Quem ignora isso perde o bonde. Contrariar esse dado social emergente é somente mais uma forma de negacionismo, desta vez, político e social. E não entender a dimensão disso tem aprofundado os antagonismos entre essas pessoas e os partidos de esquerda, especialmente.
Entre as frentes de esquerda, considero que o discurso pejorativo contra os evangélicos é produto ainda do ranço racionalista e materialista das matrizes do pensamento crítico, que tradicionalmente insistiam em ver a religião tão somente como “o ópio do povo”. Bom, insistir nisso não tem ajudado em nada, pelo contrário. Na verdade, isso tem contribuído ainda mais para a polarização eleitoral dos últimos tempos, haja vista que, no mínimo, é difícil para qualquer um aliar-se a quem veementemente nos repudia.
Como é de se esperar, os dados costumam fugir a nossa idealização. E esse dado talvez frustre as expectativas identitárias de alguns: o fato é que hoje há mais pessoas negras que se autoproclamam evangélicas no país do que praticantes de religiões de matriz africana.
Com isso não quero fazer tábula rasa da perseguição secular e violenta que os povos de terreiro sofreram e continuam sofrendo dentro da nossa sociedade, o que explica e justifica muito da sua resistência contra o racismo e outras formas de opressão, mas trazer ao centro algo que a academia vem apontando há muito tempo, mas que estamos negligenciando do ponto de vista político – hoje, no Brasil, ninguém poderia ousar pensar ou falar sobre o país sem levar em conta o fenômeno da intersecção das questões raciais às questões religiosas e políticas no contexto das periferias urbanas de todo o país.
Não tenho qualquer mérito para hierarquizar ou sistematizar as escolhas religiosas dessa população aqui (por que o protestantismo, por exemplo, cresce mais entre a população preta e parda do que as religiões de matriz africana). Por exemplo, não posso, de modo algum, afirmar que essas pessoas aderem ao protestantismo por razões sociais ou em função do reconhecimento da sua identidade étnica.
E, sinceramente, acho até difícil que se possa identificar um padrão de trajetória para estas pessoas, mas o fato é que a observação da realidade chama a nossa atenção para dois pontos em especial: primeiro, as igrejas periféricas se pulverizaram nas periferias nas últimas décadas e depois, a mensagem dessas igrejas, das pentecostais às históricas, falam que questões que fazem sentido para essas pessoas – e isso explica muito da sua expansão junto ao brasileiro pobre e periférico, que não por acaso, em função de ciclos históricos de desvantagens, também é negro .
Mas o que essas pessoas encontram nessas igrejas? Por que pra nós aquilo soa irracional, mas pra seus grupos de adeptos aquilo lhe dá sentido à vida. Parece difícil de entender se insistimos sobre nossas lentes, mas basta ouvir estas pessoas: essas igrejas melhoram suas vidas. É um fato. Elas se sentem melhores, mais felizes e mais seguras dentro dessas igrejas do que fora delas.
Talvez isso seja menos visível aos olhos críticos dos que insistem em entender, da sua bolha segura e blindada, que a religião é uma ideologia opressiva, misógina e patriarcal (o que eu, partindo de minha formação, concordo, mas tenho a relativizar em se tratando de outrem). Minha questão está longe de ser teológica. Não quero problematizar a existência ou não do divino e a que propósitos essa ideia serve, mas destacar o quanto essas igrejas fazem sentido na medida em que oferecem resultados objetivos sobre a vida dessas pessoas.
Nada disso é novo para a pesquisa social clássica, mas há variações aí que precisam ser notificadas. Quando Weber, no seu clássico trabalho sobre a ética protestante identificou e explorou as conexões entre protestantismo e capitalismo a partir de dados empíricos, ele destacou o quanto o credo protestante e os valores impressos na conduta dessas pessoas eram capazes de transformar características culturais e ocupacionais dessas pessoas e, não por acaso, impactar suas vidas materiais e, ainda mais, ainda que não intencionalmente, estimular o desenvolvimento do modo de produção capitalismo.
Bom, no caso das nossas periferias, essas igrejas não somente imprimem mudanças sobre a vida material dessas pessoas, como observou Weber, elas também salvam suas vidas e por isso mesmo, têm tanto prestígio.
Para uma família pobre e periférica, manter-se em torno da órbita da igreja oferece diversas garantias. Por exemplo, a garantia da probabilidade de que muito dificilmente os filhos não vão vir a se envolver com o tráfico, haja vista o patrulhamento de condutas que acompanha a definição de igreja desses grupos. A igreja afasta os fiéis do sexo masculino do consumo de bebidas alcóolicas que são sumariamente proibidas por estas igrejas, cortando um dos principais canais de transmissão da violência doméstica.
Estabelece redes de auxílio e cooperação entre seus membros, ampliando laços sociais e oportunidades financeiras, o que é reforçado pelo senso de unidade que envolve as denominações, além de garantir algum o acesso a algum tipo de lazer, entretenimento e empoderamento, raríssimos nas nossas periferias.
Pode não ser o modelo ideal de inclusão social e prevenção contra a violência, claro, mas ele funciona. Esse é o ponto. Uma prova flagrante da dimensão que o fenômeno evangélico ocupa hoje junto aos moradores de comunidades é a ramificação e o entrelaçamento dele com outros componentes há muito presentes nesse universo, como, por exemplo, o crime organizado.
Com isso não quero julgar o neopentecostalismo ou associá-lo irresponsavelmente ao mundo do crime, mas pontuar o quanto o seu avanço sobre essa população tem se ramificado sobre todos os aspectos da vida social destes territórios, de modo que nem o tráfico, que a princípio se orienta por valores avessos à filosofia cristã, conseguiu seguir indiferente ao apelo desses grupos. E se até os políticos da direita instrumentalizam a religião ao seu favor, por que os traficantes não fariam isso também, não é mesmo?
Naturalmente, qualquer evangélico negaria a possibilidade de um traficante ser evangélico, mas não é isso que importa aqui. O que importa é que esses traficantes se entendem assim. São pessoas que têm uma vida religiosa, participam de cultos e não veem contradição em empunhar, de um lado, um fuzil e do outro, uma Bíblia. Isso dá a dimensão do quanto as igrejas evangélicas se capilarizaram nesses espaços.
Esse encontrou ou essa fusão entre o mundo do crime e o universo da religião é nociva e perversa, sobretudo para as religiões de matriz africana, contudo, o que é mais flagrante, politicamente falando, é o fato de que até o tráfico já entendeu que precisa se aproximar dessas pessoas, estabelecer alguma forma de diálogo com esses grupos e a esquerda, que deveria saber chegar junto do povo, infelizmente, ainda não entendeu isso.
Criticá-los, julgá-los ou rotulá-los de alienados, conversadores, reacionários ou antidemocráticos em nada ajuda, além de infligir numa grande injustiça. Uma parte dessa população evangélica é conservadora sim, mas nem todos são. Quando os pretensamente críticos fazem isso, perdem qualquer possibilidade de diálogo com as milhares de denominações que compõem essa comunidade e reforça a aliança estratégica entre os “rejeitados”.
Acredito mesmo que aquilo que os críticos de esquerda falam hoje dos evangélicos, apoia-se muito mais numa representação fantasmagórica que nós mesmos criamos deles a partir da repulsa a alguns pastores midiáticos, do que, de fato, uma observação fundada sobre evidências. Ousaria até mesmo dizer que as frentes mais progressistas os odeiam sem nem mesmo se permitir conhecê-los.
E reitero: é preciso conhecer essas pessoas. Não basta lançar uma carta aberta nos anos eleitorais. Essas pessoas se sentem, muitas fezes, mal vistas pro professarem sua fé junto aos partidos de esquerda ou junto aos movimentos sociais (ainda que existam frentes que proclamem sua fé dentro dessas legendas, esses grupos ainda são muito minoritários). Na universidade também, persiste um cerco preconceito contra essas pessoas.
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Muitos estudantes relatam que se sentem vistos como alienados ou rotulados “de direita” só por se identificarem como evangélicos. E repito: a questão aqui não é teológica, é política, afinal de contas, duvido que esquerdas e evangélicos discordem dos princípios civilizatórios.
Se a esquerda não consegue chegar junto dessas pessoas ou apresentar pautas que se integrem aos seus anseios, outros têm chegado. É dessa forma que a repulsa da esquerda tem os aproximado da direita, que os fisga pelo apelo emocional a pautas sensíveis e não por um projeto de sociedade.
É preciso ouvi-los. Não subestimar suas impressões de mundo ou seus valores, mesmo se não concordamos com estes. É preciso adaptar a linguagem, traduzir a mensagem e falar a partir de problemas reais: a precariedade do transporte público e o ônibus lotado nos horários de pico, a disponibilidade de creche pras crianças, acesso à saneamento e disponibilidade de vagas na escola, estimular a formação de lideranças políticas populares e estender a noção de cidadania.
A esquerda tem o conteúdo, mas lhe falta a forma. De nada, por exemplo, adianta apelarmos aos meios tradicionais de informação ou às páginas de opinião para transmitir essas mensagens (e aqui faço minha mea-culpa). Seguimos encastelados falando para nós mesmos, nutrindo nossa própria bolha. É preciso tornar-se acessível de novo a essas pessoas, sem esquecer que essas pessoas já votaram majoritariamente na esquerda. Elas continuam sendo povo. Elas não estão perdidas, no máximo, elas estão desgarradas.