Imagine que uma multinacional comece a operar no Brasil. Como é natural, a empresa passa adotar políticas de gestão de recursos humanos (RH) que também vigoram em outros países em que está presente. Uma delas, bastante comum internacionalmente, é um processo de incremento de performance para melhoria do desempenho e da conduta de colaboradores. Funciona da seguinte forma: os gestores identificam profissionais que não estão performando como esperado e, antes de lhes demitirem, oferecem ferramentas para orientar o colaborador a buscar uma melhoria em seu desempenho.
A multinacional utiliza de modo facultativo a ferramenta: são os gestores que escolhem os trabalhadores que terão a oportunidade de fazer parte desse processo. Igualmente, a política se destina exclusivamente a casos em que há uma queda no desempenho ou problema de conduta que possa, na visão da empresa, ser aprimorada. Essa espécie de política de RH é bastante utilizada ao redor do mundo, por empresas de variados setores econômicos. O termo em língua inglesa é Performance Improvement Plan (Plano de Incremento de Performance, em tradução literal), sendo comum a designação por meio da sigla PIP.
A Câmara de Comércio dos Estados Unidos (U.S. Chamber of Commerce), por exemplo, apresenta o PIP como uma ferramenta adequada a “ajudar a corrigir o curso de funcionários com baixo desempenho, para ajudá-los a se tornarem um ativo próspero na equipe de um empregador”.[1]Já o portal Forbes apresenta o PIP da seguinte maneira: “[o] plano de melhoria de desempenho, ou PIP, é um documento escrito que identifica como um funcionário não está atendendo às expectativas e o que precisa ser feito para melhorar (e permanecer empregado)”. Além disso, a Forbes traz diretrizes de implementação do PIP.[2]
O PIP, é certo, não cria uma garantia de emprego para o empregado. É um programa estabelecido unilateralmente e por mera liberalidade do empregador, o qual tem discricionariedade para utilizá-lo quando e com quem reputar conveniente. Essa é a regra prevalecente nos locais onde se permite a chamada demissão sem justa causa, caso da maioria dos estados americanos, por exemplo. Lá impera o que se chama de “at-will employment doctrine”, segundo a qual qualquer empregado, desde que ausente discriminação, pode ser demitido nos casos de contrato por tempo indeterminado.[3]
É o mesmo modelo vigente no Brasil. Aqui, embora haja um desincentivo à demissão sem justa causa, com o oferecimento de garantias aos trabalhadores para essa circunstância, o empregador também está livre para demitir. Ele tem o que tecnicamente se denomina direito potestativo de demitir, o qual é constitucionalmente balanceado com a previsão do pagamento de multa de 40% do FGTS, com a garantia do seguro-desemprego e também com a possibilidade de o empregado pedir demissão sem motivo, a qualquer momento, apenas mediante o cumprimento de aviso prévio.
O caso Walmart
Passemos ao caso concreto do grupo Walmart, multinacional que se instalou em 1995 e deixou o país em 2020. Reproduzindo a prática que adotava nos Estados Unidos e em outros países em que opera, o Walmart criou um programa do gênero PIP, denominado Política de Orientação de Melhoria, conhecido pela sigla POM. No curso da vigência do POM, ex-empregados do grupo que foram dispensados sem serem selecionados para participar da política ajuizaram ações perante a Justiça do Trabalho.
Nelas, havia pedido de reintegração e de recebimento da remuneração relativa ao período desde a demissão até a eventual readmissão, o que, em termos práticos, significa o reconhecimento de uma estabilidade de emprego. ada a multiplicidade de ações com o mesmo objeto, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) afetou a questão ao rito dos recursos do repetitivos (IRR).
Ao julgar a matéria, a Corte Superior trabalhista, por 7 votos a 6, acolheu o pleito dos trabalhadores: todos os empregados que foram demitidos sem passar pela política de incremento de performance têm de ser readmitidos e devem receber a remuneração pelo período em que estiveram afastados, mesmo não tendo trabalhado. O argumento adotado pela Corte Superior Trabalhista foi o de que a política teria passado a integrar os contratos de trabalho e se tornado um direito dos trabalhadores. Logo, o PIP criado pelo grupo Walmart e aplicado em conformidade com o que ocorre em outras partes do mundo, na perspectiva do TST, não era facultativo, mas obrigatório.
Antes de tudo, para se compreender a relevância do caso, é importante ressaltar os efeitos concretos do acórdão do TST. O Grupo Carrefour, que adquiriu o Grupo BIG (sucessor do Walmart) em 2020, terá que readmitir cerca de 6.000 ex-empregados e pagar milhões de reais em indenizações para quem havia sido demitido e, portanto, não trabalhou.
O que se tem, portanto, é um absoluto caos gerencial decorrente de uma decisão que, desnaturando o que significa um PIP em qualquer lugar do mundo, limitou o direito potestativo do empreendedor de demitir seus empregados, algo que tem sido a regra no direito brasileiro e reiteradamente confirmado pelo STF, gerando um direito ao recebimento de verbas sem que o empregado, durante muitos anos, tenha trabalhado, não obstante já tenha ocorrido a sua recolocação em outro posto de trabalho, o que significa a criação de uma estabilidade sem previsão normativa.
Os PIPs e o STF
A questão será julgada pelo STF na primeira semana de fevereiro de 2024, por meio da apreciação do ARE 1.458.842/RS, da relatoria da ministra Cármen Lúcia. A Suprema Corte terá a última palavra sobre o caso, de forma que definirá tese jurídica no sentido de se há violação à livre iniciativa, à livre concorrência, à legalidade e à liberdade econômica na decisão judicial que considera obrigatória a observância de programas de incremento de performance em detrimento do direito potestativo de demitir.
Esse precedente tem o condão de orientar também o julgamento de casos relativos a PIPs de outras empresas, como Lojas Renner, Citibank, Santa Casa de Misericórdia (Porto Alegre), o Sesi (Espírito Santo) e a Universidade Estácio de Sá.
Política Discricionária
Sob o ângulo jurídico, está mais do que sedimentado internacionalmente que os PIPs são facultativos e que a sua implementação decorre de decisão gerencial do empregador, que avalia se pretende investir ou não na recuperação de determinado empregado.
Por exemplo, em Breeding v. Integrated Behaviroal Health Inc., decidido pela Corte Federal de Apelações do 11º Circuito dos Estados Unidos, foi rejeitada a alegação de que a demissão sem justa causa de uma funcionária havia sido discriminada por razões de gênero, pelo fato de uma empregada ter sido demitida sem que tivesse sido submetida ao PIP. O Tribunal entendeu razoável a justificativa de que (a) a empresa estava adotando uma política de redução de pessoal e, também, que (b) o empregador poderia julgar a submissão ao PIP ineficiente, já que o baixo desempenho da funcionária já perdurava há mais de seis meses[4].
Da mesma maneira, em Mickealson v. Cummins, Inc., a Corte Federal Distrital de Montana considerou regular a demissão de um empregado não submetido a um PIP, pois o motivo da demissão foi a “má comunicação” do trabalhador e não havia qualquer evidência produzida pelo reclamante de que a empresa colocasse empregados com esse tipo de problema em PIPs[5].
Decisões no mesmo sentido são ainda recorrentes para atestar a legalidade de demissões que, afastando a necessidade de submissão de um empregado a um PIP, reconheceram, por parte desses funcionários, (i) flagrante violação sanitária (Weil v. Sunrise, Corte Distrital de Maryland[6]); (ii) ofensas à ordem social, com inúmeras notificações indicando a necessidade de correção de conduta (Ingram v. Pfizer, Inc., Corte Distrital do Distrito Central da Florida[7]); e (iii) descumprimento de regras de conduta, mesmo após conversas com gestores (Irving v. Georgia Pacific Corp, Corte Distrital do Distrito Central da Louisiana[8]).
Em resumo, o que se percebe é que a colocação de um empregado em um programa de incremento de performance é uma prerrogativa do empregador, a qual não pode ser considerada obrigatória.
Desestímulo à reprodução da política
Além do ângulo jurídico, é evidente que se o STF mantiver o entendimento do TST e considerar que se um empregador adotar uma política como o PIP para incremento de desempenho ele deverá obrigatoriamente implementar essa política para todas as demissões, até mesmo para aquelas com justa causa, haverá um profundo desestímulo à adoção deste tipo de ferramenta. Esse desestímulo poderá, inclusive, representar um tratamento distinto ao empregado brasileiro do que o conferido internacionalmente, por empresas multinacionais, a empregados do mesmo grupo, em empresas instaladas em outros países.
Esse desestímulo é evidente porque a maior parte das demissões sem justa causa numa empresa nada tem a ver com o desempenho do empregado. Questões financeiras, estruturais, tecnológicas são muito mais comuns para esse tipo de demissão do que a baixa performance do profissional. Assim, difícil compartilhar da racionalidade da conclusão do TST de que todas as demissões deveriam ter sido precedidas de inclusão dos empregados no programa de orientação de melhoria.
Igualmente, empresas estrangeiras que operam no Brasil sofrerão desincentivo para adotar políticas análogas, em prejuízo aos trabalhadores, diante da restrição excessiva ao exercício da livre iniciativa, que não está prevista na Constituição ou em qualquer outro documento legal. É dizer: a insegurança jurídica derivada da criação judicial de uma hipótese não prevista de estabilidade dos empregados será negativamente considerada na avaliação de investidores e empresários estrangeiros, que questionarão se é válido tratar os empregados daqui da mesma maneira como tratam no exterior. Inequivocamente, a necessidade de flexibilidade para tomada rápida de decisão de reorganização do negócio fica comprometida.
As políticas que se destinam a aprimorar a performance dos empregados, bastante comuns em âmbito internacional, ainda têm muito potencial de exploração no Brasil. A razão pela qual empresas multinacionais não adotam ferramentas similares, as quais têm por objeto favorecer o trabalhador, possivelmente têm correlação com os riscos jurídicos que podem advir dessa escolha.
O caso Walmart, que atualmente está sob apreciação do Poder Judiciário brasileiro, é uma evidência dessa assertiva. O Grupo Carrefour Brasil, por sua vez, ao adquirir o Grupo BIG (sucessor do Walmart), se viu numa zona enorme de insegurança: está hoje fadado a readmitir milhares de profissionais que não necessita e a pagar um montante bilionário em indenizações a colaboradores que não trabalharam para receber esses valores nem um dia sequer.
Uma compreensão adequada do que significam os PIPs, especialmente do seu caráter facultativo e discricionário, pelo STF, é essencial; sob pena de privar os trabalhadores nacionais dessa importante ferramenta de aprimoramento profissional, o que significa ceifar uma oportunidade que poderia ser dada ao empregado local e que seu correlato no exterior seguirá usufruindo.
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Os coautores do presente artigo representam o WMS no ARE 1.458.842/RS.
[1] https://www.uschamber.com/co/run/human-resources/performance-improvement-plan-templates. Acessado em 7.1.2024
[2] https://www.forbes.com/advisor/business/performance-improvement-plan/. Acessado em 7.1.2024.
[3] https://www.law.cornell.edu/wex/at-will_employment. Acessado em 7.1.2024.
[4] 2023 U.S. App. LEXIS 13338.
[5] 2018 U.S. Dist. LEXIS 163310.
[6] 2021 U.S. Dist. LEXIS 230942.
[7] 2011 U.S. Dist. LEXIS 166010.
[8] 2021 U.S. Dist. LEXIS 112092.