Em outubro de 2018, a desembargadora Kenarik Boujikian, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), foi acionada perante o Conselho Nacional de Justiça por ter criticado fala do então presidente do Supremo Tribunal Federal, que deu ao golpe de 1964 o nome de “movimento”.
O episódio ilustra um problema recorrente na aplicação das restrições impostas à liberdade de expressão judicial: a seletividade. Em seu despacho, o corregedor nacional de Justiça escreveu que a manifestação de Kenarik poderia configurar, em tese, violação às regras previstas no art. 95, parágrafo único, III, da Constituição da República, que veda aos juízes o exercício de atividade político-partidária, e no art. 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que proíbe que o magistrado manifeste opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças.
Essas razões revelam o regime limitativo que o ordenamento estabelece face à liberdade de expressão dos juízes. Salta aos olhos, porém, que, em um caso sem partido nem processo, embora dois juízes tenham falado, a um coube prestar esclarecimentos, e o outro permaneceu inatingível.
A liberdade de expressão constitui um princípio fundacional da ordem jurídica, intimamente ligado à concepção procedimental de Estado de Direito.[1] O cidadão só consegue se posicionar como partícipe do processo de formação da vontade coletiva na medida em que é livre para manifestar suas opiniões, defender seus posicionamentos, professar suas crenças e reivindicar os direitos que entende merecedores de reconhecimento.
Nessa perspectiva, é fundamental que o magistrado, que é ator com enorme responsabilidade política, participe ativamente do processo deliberativo. Isso implica que sua liberdade de expressão seja, também, protegida, vez que de tal proteção depende o exercício autônomo e politicamente consciente da função judicante.
Contudo, a democracia constitucional exige sejam estipuladas limitações ao exercício da referida liberdade. À luz de uma separação dos poderes orientada para a construção de uma governança articulada,[2] a especialidade da contribuição que o Judiciário tem para oferecer à governança democrática está essencialmente lastreada em uma autoridade exercida com imparcialidade, em contraditório e por meio de um discurso vinculado a argumentos de princípio.[3]
Assim, permitir ao magistrado que se expresse em público sem restrições importaria em desnaturar a integridade da jurisdição, esvaziando a razão de existir de um poder que, embora não sujeito à responsabilização política sazonal, ocupa um lócus próprio – e, por isso mesmo, insubstituível – de afirmação do Estado de Direito e dos direitos fundamentais.
Disso decorre a necessidade de um código de conduta judicial que discrimine obrigações especiais, entendidas como tais por serem oponíveis a um grupo específico de agentes, considerada a função que exercem, em oposição ao plexo de deveres comuns cominados a todas as pessoas qua pessoas.[4] Tais obrigações estão arrimadas na perspectiva de que as exigências impostas à atuação de determinado sujeito podem variar conforme o papel ocupado por ele na comunidade. Aos juízes deve caber um conjunto robusto e austero de deveres, inclusive – e sobretudo – no tocante à liberdade de expressar-se publicamente.
Os limites concebidos a tal liberdade podem ser analisados segundo diversos prismas: a diferença entre liberdade de expressão e liberdade acadêmica; a distinção entre declarações exaradas dentro e fora do ambiente processual-decisório e, no que tange às expressas dentro de tal ambiente, a separação entre ratio decidendi e obter dictum; o conteúdo do discurso proferido e o contexto em que a indiscrição judicial acontece; a natureza e a severidade das penalidades impostas contra o juiz indiscreto; entre outros.
Um problema central, que merece ser abordado tanto normativa quanto pragmaticamente, é o da assimetria na aplicação de sanções, graduada a depender do sujeito que incorre na violação. Como já explicitado, as práticas institucionais no Brasil recente têm demonstrado que a posição hierárquica ocupada pelo magistrado é fator decisivo para a definição do grau de assertividade da reação sistêmica a uma indiscrição política ou midiática exagerada.
Neste estudo, que é parte de uma investigação maior, propõe-se uma hipótese inicial de leitura: a obrigação dos magistrados de desempenhar suas funções com discrição e desassombro, em respeito aos limites impostos à sua liberdade de expressão, deve ser mais acentuada e abrangente no âmbito dos tribunais, em especial os superiores.
Em outras palavras: a responsabilidade do magistrado aumenta à medida que se eleva sua posição na estrutura da jurisdição, tendo em vista o impacto igualmente crescente, material e simbólico, de suas decisões e de seus posicionamentos públicos.
A suposição se escora em uma distinção conceitual entre os papeis do juiz e do magistrado. O juiz é um agente-figura que se constrói e se desconstrói no âmbito processual, emergindo do exercício dialético do contraditório e desaparecendo em seguida ao pronunciamento decisório; o magistrado, por sua vez, é um agente-ator que age e interage politicamente na arena deliberativa, já que integra e representa o Judiciário.[5]
Com isso em vista, pode-se dizer que os integrantes dos órgãos jurisdicionais de cúpula são mais magistrados que os juízes de instâncias inferiores, em razão de figurarem como representantes primeiros e principais porta-vozes da instituição; é natural que dessa posição de destaque derive um conjunto maior de responsabilidades funcionais. São eles, portanto, os que mais atenção devem prestar à exigência de atuar com reserva, despojamento, resguardo, sobriedade e discernimento diante dos fóruns políticos, da imprensa e da opinião pública.
[1] LEWIS, Anthony. Freedom for the thought that we hate: a biography of the First Amendment. New York: Basic Books, 2009.
[2] WALDRON, Jeremy. Separation of powers in thought and practice. Boston College Law Review, Vol. 54, Issue 2, 2013, pp. 433-468; WALDRON, Jeremy. Political political theory. Cambridge: Harvard University Press, 2016, pp. 54-89.
[3] DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, pp. 121-128.
[4] DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Belknap, 1986, pp. 176-224. Ver também: HARDIMON, Michael. Role obligations. Journal of Philosophy, vol. 91, 1994, pp. 333-363.
[5] Cf. BAUR, Fritz. Grundbegriffe des Rechts der freiwilligen Gerichtsbarkeit. Frankfurt: C. H. Beck, 1952.