Os limites do poder normativo das agências reguladoras

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O tema relativo à competência normativa das agências reguladoras sempre gerou intenso debate. 

A teoria da regulação nasceu nos EUA, com as regulatory agencies. No Brasil, esse modelo foi recepcionado pela Constituição de 1988, de modo que as agências reguladoras exercem papel de fiscalização, regulação e controle de produtos e serviços em mercados regulados.

Sem negar a atribuição normativa das agências reguladoras, fato é que esta deve ser exercida em estrita observância dos limites constitucionais e legais. Todavia, não é raro que tal poder seja exercido com a ultrapassagem indevida de tais contornos.

No setor elétrico, por exemplo, recentemente a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) publicou a Resolução Normativa 1.077/23 (REN 1.077), que estabelece os requisitos para transferência de controle societário de concessionário/autorizatário como alternativa à extinção da outorga, conforme previsto pelo no 4º-C da Lei 9.074/95.

Dentre os fundamentos da lei, estão: (i) evitar ônus reversão dos bens e liquidação da empresa; e (ii) preservar empregos, contratos de fornecimento e direitos dos credores.

O citado art. 4-C estabelece que o tema devia ser regulado pela Aneel, e foi o que ela fez. Todavia, a resolução acabou por extrapolar os limites da atribuição normativa da Aneel, o que pode ser exemplificado em cinco aspectos da norma.

O primeiro aspecto refere-se à indevida delimitação subjetiva criada pela Aneel. A REN 1.077 estabelece que o mecanismo legal somente pode ser aplicado para agentes de geração e transmissão de energia, retirando a prerrogativa dos concessionários de distribuição de utilizarem essa faculdade legal.

A Lei 9.074 cita, sem qualquer restrição, “concessionário, permissionário ou autorizatário de serviços e instalações de energia elétrica”. Onde a lei não delimitou, não cabe ao intérprete – muito menos ao regulador – fazê-lo.

Para reforçar esse ponto, importante citar a Exposição de Motivos da Medida Provisória 735/16 (que deu origem ao citado art. 4-C), no qual é categórico ao afirmar que não só os agentes de distribuição integram o comando legal, como eles foram a própria motivação da lei:

Adicionalmente, considerando o grande esforço que o governo está envidando para viabilizar as concessionárias de distribuição sob controle público, (…). 

Nesse sentido, sugerimos que o processo de caducidade da concessão possa ser interrompido por meio de um plano de troca do controle societário. (…).

O segundo aspecto que demonstra o desvio da competência normativa da Aneel decorre da ilegal delimitação objetiva trazida pela REN 1.077, uma vez que a aplicabilidade do mecanismo foi restrita aos empreendimentos em construção ou em processo de ampliação.

A Lei 9.074 não previu tal restrição. Ao contrário. Consta do §1º do art. 4-C, expressamente, que a transferência do controle deve servir para a “adequação do serviço”, ou seja, é evidente que a lei trata também de empreendimentos que já estejam em operação comercial.

Pode-se ir além. Fazendo referência novamente à Exposição de Motivos da MP 735/2016, tem-se como benefício do mecanismo a “continuidade do serviço público prestado”, o que não deixa dúvidas de que a regulação ora criada vai de encontro não só com o texto legal, como também com o mens legis da norma.

O terceiro aspecto refere-se à criação ilegal de delimitação quantitativa do número de planos que podem ser apresentados em relação a uma outorga.

A REN 1.077 prevê que o plano de transferência somente pode ocorrer uma única vez para cada outorga. Todavia, além de contrariar o texto legal, a nova regulação contraria, inclusive, precedentes da própria agência.

Como exemplo, caso haja um determinado problema com uma transmissora em seu primeiro ano de operação e o seu controle societário seja transferido, o novo controlador não poderá utilizar o mecanismo no seu vigésimo ano de operação, sob uma situação fática totalmente distinta.

Ao criar uma restrição de direitos não prevista em lei, a agência extrapola o seu poder regulatório, para além de ir de encontro aos benefícios estabelecidos pela MP 735/2016.

O quarto aspecto diz respeito à criação de critério temporal distinto daquele determinado pela Lei 9.074. Enquanto a lei estabelece que o mecanismo pode ser utilizado justamente para suspender o processo de revogação da outorga, a REN 1.077 prevê que o plano somente pode ser apresentado “entre a data de emissão do Termo de Intimação e a primeira decisão da Diretoria”.

A própria Aneel, em precedente recente, analisou e acolheu plano de transferência de controle societário apresentado por agente de geração após a decisão de 1ª instância administrativa que revogara as outorgas. Naquela oportunidade, a diretoria da Aneel entendeu que:

No entanto, da análise do conjunto de normas e princípios que compõem o arcabouço normativo nacional, verifica-se, permissa vênia, que acaso fosse adotado o r. entendimento acima, equivaleria a dizer que uma vez tomada uma decisão administrativa em 1ª instância – reversível, portanto, em sede recursal –, cujo respectivo recurso não fosse dotado de efeito suspensivo, esta decisão estaria revestida pelo manto da imutabilidade e indiscutibilidade das decisões, mesmo sem a ocorrência do respectivo trânsito em julgado e da consequente coisa julgada administrativa – esta, corolário do princípio constitucional da segurança jurídica.

O quinto e último aspecto trata da previsão de que a retirada de todos os antigos sócios é condição para aprovação do mecanismo pela Aneel.

Seria razoável, nesse sentido, estabelecer limitação em relação ao grupo de controle de governança ou financeiro na sociedade. A exigência de exclusão de todos os sócios representa, por exemplo, que a aprovação do plano estaria condicionada ao fechamento do capital de uma empresa com ações negociadas em bolsa. Em um cenário em que a empresa está passando por graves dificuldades, é provável que a recompra das ações comprometa, ainda mais, a viabilidade do empreendimento. 

A falta de razoabilidade e criação de critério que enfraquece ou torna inacessível o mecanismo criado por lei não é consectário lógico da função normativa das agências reguladoras.

Não há qualquer ângulo pelo qual se possa questionar a importância das agências reguladoras para o correto funcionamento e desenvolvimento de mercados regulados. Nesse sentido, as críticas ora apresentadas visam alertar para que o poder normativo seja exercido com o devido cuidado e sempre dentro dos preceitos legais e constitucionais.

Essa é uma medida de suma importância, não só para que as propostas legislativas que objetivam o enfraquecimento das agências reguladoras não ganhem ainda mais força, mas também pelo fato de que normas eivadas de vícios – como a REN 1.077 – acabam por comprometer a segurança jurídica e estabilidade regulatória de setores sensíveis ao capital intensivo, como é o caso do setor elétrico.