A advogada Vanessa Bispo, especialista em direito de família, está há seis anos defendendo a ex-mulher de um empresário brasileiro que se separou após 13 anos morando com a esposa sem formalizar nem o casamento, nem a união estável.
“Eles se separaram há anos e até hoje a partilha não foi feita porque estamos nessa briga de seis anos só para fazer a perícia societária de todas as empresas que se comunicam — algumas que ele herdou, outras que ele construiu”, conta a advogada, que no entanto conseguiu um valor de 50 mil por mês em alimentos (pensão) para sua cliente. “Quando eles se separaram, os filhos eram crianças. Agora já estão na faculdade.”
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A advogada afirma que, se as empresas não fossem familiares, provavelmente o caso já teria tido um acordo.
“Normalmente, os outros sócios das empresas costumam obrigar o sócio que está se divorciando a fazer um acordo, para evitar afetar o negócio durante anos. Mas quando se tratam de empresas familiares, eles acabam comprando a briga junto”, conta Bispo. “E muitas vezes eles fazem a separação com advogados da própria empresa, que não são especialistas em direito de família, o que é um tiro no pé.”
Bispo explica que muitas pessoas não fazem a formalização por achar que, ao não serem casadas, estão protegidas, quando, na prática, é justamente o contrário — porque o regime de bens padrão de uma união estável é o de comunhão parcial de bens, ou seja, todo o patrimônio que foi adquirido após o casal estar junto pertence a ambos.
“Algumas pessoas formalizam depois de alguns anos morando juntas, mas o problema é que você não pode retroagir a separação total de bens, que tem efeito ex-nunc, ou seja, só vale dali para a frente. Então todo o patrimônio adquirido nos anos anteriores é bem comum, incluindo participação societária”, explica a advogada.
Mas não são somente casos de separação em união estável não formalizada que podem afetar as empresas. O divórcio de um dos sócios é uma causa comum de dor de cabeça para empresas pequenas e médias e, muitas vezes, até para grandes empresas.
Ao contrário do que acontece no caso da sucessão patrimonial, onde a lei é bastante detalhada, a legislação estabelece poucas diretrizes sobre a partilha das participações societárias em caso de divórcio — o que amplia a possibilidade de litígio. Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem atuado na criação de uma jurisprudência que proteja as empresas de paralisia, sem desconsiderar os direitos familiares.
“A dissolução conjugal, seja por divórcio ou dissolução de união estável, deve, em regra, ser tratada como questão estritamente pessoal dos sócios. Na prática, contudo, conflitos familiares podem irradiar efeitos sobre a sociedade empresarial, especialmente quando houver a necessidade de se contemplar a titularidade de quotas ou ações da empresa na partilha dos bens que pertenciam ao casal”, afirma Claudio Miranda, sócio do Chalfin Goldberg Vainboim Advogados.
Em geral, embora o ex-cônjuge não tenha direito à participação de fato ou ao patrimônio da empresa em si, ele tem direito ao valor correspondente à parte devida na participação societária — quando o regime de bens é de comunhão total ou parcial.
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“Via de regra, se as quotas eram de titularidade de um único cônjuge, mas compunham o patrimônio comum do casal, a partilha não confere ao outro cônjuge o direito de ingressar na sociedade ou votar em deliberações sociais, mas sim de receber os direitos econômicos (lucros e/ou haveres)”, explica Daniel Zarenczansky, advogado do Yarshell Advogados.
“Temos que lembrar que o cônjuge não é sócio da empresa, ele é sócio do sócio — já que o casamento é uma sociedade familiar”, explica Vanessa Bispo. “Então a empresa não é obrigada a aceitar a entrada de um ex-cônjuge devido a uma partilha.”
No entanto, o direito ao valor correspondente às cotas invariavelmente impõe um ônus financeiro ao sócio (ou à própria empresa) e o obriga a fazer a liquidação do valor, afetando seu patrimônio. Além disso, a definição do valor correspondente à essa participação pode causar transtornos ao negócio.
“Para determinar o quanto da empresa pertence a um sócio, às vezes é preciso fazer uma avaliação do valor da empresa toda. E aí você tem aí profissionais de fora fazendo uma varredura dentro da sua empresa”, afirma Bispo.
E, em alguns casos, lembra Bispo, um processo muito litigioso que se arrasta por anos pode afetar também a imagem e a reputação da empresa.
O regime de bens e o contrato social
Há três fatores principais que determinam como o divórcio de um dos sócios vai afetar a empresa: o regime de bens do casamento, a natureza jurídica da empresa e as previsões no contrato social, explica o advogado Luiz Felipe Baggio, especialista em planejamento sucessório e proteção patrimonial e diretor-geral de operações na consultoria Evoinc.
No regime de comunhão parcial de bens — o padrão no casamento e na união estável, a não que casal opte por outro — entram na partilha o valor das quotas sociais ou ações adquiridas onerosamente durante o casamento, mesmo que estejam em nome de apenas um dos cônjuges. Se a empresa já existia antes, a partilha pode abranger a valorização patrimonial que ocorreu durante a união, explica Baggio.
Na comunhão universal de bens, todos os bens, adquiridos antes ou durante o casamento, incluindo a participação societária na empresa, são considerados comuns e entram na partilha. Na separação total de bens, a participação societária não entra na partilha, pois cada cônjuge mantém a propriedade exclusiva de seus bens, quer tenham sido adquiridos antes ou durante o casamento.
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Baggio conta que muitas pessoas só se atentam para a questão do regime de bens quando os problemas começam a aparecer — e a prática de criar acordos pré-nupciais não é tão comum no Brasil quanto no exterior, embora esteja aumentando por aqui.
Em um caso recente atendido por ele de uma empresa familiar do setor agropecuário, os problemas começaram antes mesmo do divórcio, quando o marido de uma das filhas do patriarca (e sócia das empresas) começou a interferir demais no negócio da família.
Sua consultoria foi então procurada para proteger a empresa. A solução foi um acordo que deixou o genro no controle de um número grande de cabeças de gado (que não é o negócio principal da família), enquanto a terra ficaria sob o controle da família e ele abria mão de qualquer pretensão sobre ela.
“Quando a separação inevitavelmente aconteceu, a família conseguiu evitar litígio sobre o controle da empresa. Foi um caso de dar os anéis para manter os dedos”, conta Baggio.
A natureza jurídica da empresa — se é uma sociedade anônima, uma limitada ou uma empresa individual — também é um fator. Em empresas de capital aberto, a partilha pode, em tese, envolver a participação do ex-cônjuge na empresa.
“Como as sociedades anônimas são classificadas como sociedades de capital, seria eventualmente possível arguir a inexistência do intuitu personae (ação que considera a identidade e características específicas de uma pessoa, sendo insubstituível) e do affectio societatis (desejo de se associar, elemento relativo ao compromisso e confiança mútua entre os sócios) o que tornaria possível, em tese, a atribuição de ações em favor do cônjuge”, afirma Zarenczansky.
Os advogados ouvidos pelo JOTA afirmam que, quando o casamento já existe e, portanto, a decisão sobre a comunhão de bens já foi tomada, a principal medida de proteção patrimonial a ser tomada por empresários é tratar do tema do divórcio no contrato social de empresa.
“É importante considerar não apenas questões relativas à titularidade dos bens – como o momento da subscrição ou aquisição das quotas, a forma de integralização e o regime de bens adotado no matrimônio –, mas também as disposições do contrato social que assegurem a existência de procedimento claro a ser empregado pelos sócios remanescentes e pela administração da sociedade”, afirma Zarenczansky.
O contrato social pode, por exemplo, prever critérios claros para a cessão ou compra das quotas objeto de uma partilha, independentemente da vontade do ex-cônjuge, afirma Marina Machado Schmitt, advogada de direito empresarial do Vilarinho Advogados.
Também pode estabelecer critérios objetivos de valuation (a determinação do valor de mercado da empresa) e formas de pagamento dos haveres
“Por isso, é altamente recomendável a discussão antecipada deste tema entre os sócios”, afirma Schmitt.
Confusão patrimonial e fraudes
A jurisprudência tem caminhado no sentido de proteger a empresa em situações de separação. Em um caso julgado em 2016 pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.595.775-AP), por exemplo, o ex-cônjuge pediu a partilha dos valores na conta de reserva da sociedade, já que a reserva é considerada um lucro não distribuído. O Tribunal entendeu, no entanto, que como o valor de reserva era destinado a futuro aumento de capital, ele pertencia somente à sociedade, e não sócios, não podendo ser objeto da partilha na separação.
No entanto, a situação se complica quando há confusão patrimonial entre os bens da empresa e dos sócios — o que é mais comum do que se imagina, segundo os advogados de família, e não só em empresas familiares.
“Tem casos em que a empresa paga escola dos filhos dos sócios, compra coisas em nome da empresa com o dinheiro do pró-labore, ou compra uma casa na praia ou um barco, para uso pessoal da família, com o dinheiro da empresa”, conta Vanessa Bispo.
Em alguns casos, explica a advogada, a confusão patrimonial é tão grande que é virtualmente impossível separar. “Muitas vezes é difícil até de você apurar, delimitar em uma planilha qual é o valor que foi usado efetivamente e qual saiu da empresa para custos da família.” Esse tipo de situação, obviamente, complica a partilha em casos de separação.
Outra situação que pode acontecer, conta Claudio Miranda, é um dos cônjuges tentar “blindar” seu patrimônio transferindo bens para a sociedade empresária, para “reduzir” o patrimônio diretamente sob sua titularidade — ou seja, é uma fraude.
O contrário também acontece, diz ele, quando uma empresa transfere bens empresariais da sociedade para o sócio, seguida da simulação de seu divórcio e entrega de bens ao ex-cônjuge ou ex-companheiro, com o objetivo de ludibriar credores da empresa.
“Em ambos os casos se verifica o uso abusivo da personalidade jurídica”, explica Miranda, o que pode levar a Justiça a fazer a desconsideração da personalidade jurídica.
“Nas situações em que o intuito é causar prejuízos ao ex-cônjuge, o Poder Judiciário vem aplicando a desconsideração da personalidade jurídica inversa da empresa, a fim de proteger direitos do companheiro lesado, inclusive com bloqueio e constrição de ativos essenciais à operação da sociedade”, explica o advogado, que lembra que a desconsideração da personalidade jurídica, inversa ou não, deve ser sempre tratada como medida excepcional, quando de fato houver abuso.