Os ajustes de preços de transferência e os efeitos para o valor aduaneiro

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Por meio da Lei nº 14.596/23, o Brasil alinhou a legislação de preços de transferência às Diretrizes da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), fundamentadas no princípio “arm’s lenght“. Diferentemente da legislação que vigorará até 31 de dezembro de 2023 (exceto para aqueles que adotarem a Lei nº 14.596/23 antecipadamente), o preço praticado nas operações entre partes relacionadas não será mais calculado com base em margens fixas de lucro, mas sim com lastro num estudo econômico que analise ativos, riscos e funções assumidos por cada uma das partes nas operações controladas.

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Embora a legislação tenha por objetivo definir a base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), fato é que o preço praticado nas operações entre partes relacionadas nos termos da Lei nº 14.596/23 pode ter efeitos para outros tributos. Isso porque, ao final do ano-calendário, as partes devem avaliar se o preço praticado alinhou-se ao que se considera “arm’s lenght” e, caso contrário, deverão ser feitos ajustes para que haja essa convergência.

Os ajustes previstos na Lei nº 14.596/23 são três: (i) o ajuste espontâneo, que é de natureza fiscal e que é sempre feito pelo contribuinte para aumentar a base de cálculo do IRPJ/CSLL; (ii) o ajuste primário, que é similar ao ajuste espontâneo, porém é feito pela autoridade fiscal e (iii) o ajuste compensatório que, diferentemente dos demais, não é meramente fiscal, pois implica efetivamente alteração do valor praticado na operação. A alteração pode ser feita para aumentar ou diminuir o valor da operação, o que pode gerar diminuição ou aumento do IRPJ/CSLL a pagar no Brasil, conforme o caso. Ademais, o ajuste compensatório exige o cumprimento de certos requisitos, como por exemplo os reflexos simétricos e definitivos nos registros contábeis de ambas as partes da operação, bem como emissão de notas de crédito, débito ou documentação fiscal ou comercial.

Nesse contexto, a questão que se coloca é se os ajustes de preços de transferência teriam efeitos na base de cálculo de outros tributos, notadamente no valor aduaneiro, que representa (ou compõe, em alguns casos) a base de cálculo dos tributos devidos na importação de mercadorias.

A determinação do valor aduaneiro é regida pelo Acordo de Valoração Aduaneira, que determina que, sempre que possível, tal valor deve corresponder ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas. Tal regra aplica-se inclusive nas operações entre partes vinculadas, desde que a vinculação entre as partes não tenha influenciado o preço das mercadorias importadas.

A discussão sobre os efeitos de preços de transferência para fins de valoração aduaneira não é nova e tem sido objeto de discussões no exterior há muitos anos, principalmente nos países que já adotam a sistemática de preços de transferência da OCDE e que se veem diante de ajustes que visam alinhar o preço praticado ao que se considera “arm’s lenght” em momento posterior àquele em que ocorrida a operação controlada.

Por um lado, há países que determinam a convergência entre os ajustes de preços de transferência e o valor aduaneiro. Ou seja, em havendo um ajuste compensatório que vise diminuir a margem de lucro de determinada empresa e aumente o preço praticado em determinada operação de importação de mercadoria, deve haver recolhimento dos tributos devidos na importação sobre a diferença. Caso o ajuste compensatório reduza o preço praticado, o importador teria direito à restituição dos valores originalmente recolhidos sobre a diferença.

Por outro lado, há países que entendem que os ajustes de preços de transferência não devem impactar o valor aduaneiro. O exemplo mais clássico e atual sobre o tema é a Alemanha, cuja Corte Superior recentemente julgou o emblemático caso “Hamamatsu”. Naquele caso, o importador havia apresentado pedido de restituição dos tributos aduaneiros em razão da emissão de nota de crédito pelo exportador em favor do importador, ao final do ano-calendário. O julgamento foi desfavorável ao contribuinte e concluiu que os ajustes de preços de transferência retroativos não devem afetar o valor aduaneiro, que deve ser determinado a cada importação.

Sem prejuízo da polêmica e das discussões teóricas que permeiam o tema, surge a dúvida sobre qual procedimento deve ser adotado pelos importadores brasileiros do ponto de vista aduaneiro, considerando que a Lei nº 14.596/2023 entra em vigor a partir de 1º de janeiro de 2024. Infelizmente, a resposta para essa pergunta ainda não é clara.

Esperava-se que o tema fosse ser endereçado pela Receita Federal quando da regulamentação da Lei nº 14.596/2023. Por sinal, quando da edição da minuta da legislação que foi objeto de consulta pública, várias foram as contribuições apresentadas para que o tema fosse regulamentado de forma categórica, uma vez que a redação proposta continha diversos pontos de dúvida.

Porém, para a surpresa de muitos, a Instrução Normativa nº 2.161/2023, publicada em 29 de setembro, apenas previu em seu artigo 51 que “a realização de ajustes espontâneos ou compensatórios não implicará automaticamente a realização de ajustes na base de cálculo de outros tributos, inclusive os incidentes na importação de bens e serviços, os quais deverão ser apurados com observância da legislação aplicável a cada tributo.” Como se observa, trata-se de redação que, embora reconheça implicitamente a discussão entre a interação entre preços de transferência e valoração aduaneira, não enfrenta o tema de forma direta.

Embora tenham sido revogados os parágrafos propostos na minuta da consulta pública, permaneceu incólume o caput do artigo 51 e o famigerado “automaticamente”, que gera insegurança jurídica aos importadores. Isso porque o importador não tem a certeza de que os ajustes de preços de transferência não afetarão o seu valor aduaneiro, uma vez que a redação abre margem para que tal impacto surja de forma mediata, possivelmente no curso de uma fiscalização sobre valoração aduaneira.

Por sinal, a Instrução Normativa nº 2.090/22 – que regulamenta a valoração aduaneira no âmbito da Receita Federal – prevê que a diferença entre o valor aduaneiro praticado e o preço informado para fins de preços de transferência pode ensejar as dúvidas da fiscalização sobre a aceitabilidade do valor da transação.

Portanto, o futuro parece indicar que as ferrenhas discussões sobre valoração aduaneira e preços de transferência, até então observadas principalmente no exterior, passarão a fazer parte do cotidiano dos importadores brasileiros.

Felizmente, o Acordo de Valoração Aduaneira permanece plenamente vigente e, em caso de questionamento sobre o valor aduaneiro praticado, o caminho a ser percorrido pela fiscalização é longo e, acima de tudo, não automático.