Os 30 anos da cota de gênero nas eleições: conquistas, retrocessos e desafios

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Em 1995, o Brasil instituiu, pela Lei 9.100, a política de reserva mínima de candidaturas por gênero, cumprindo compromissos da IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing) [1]. Pela primeira vez, o Estado reconhecia que a sub-representação feminina na política não era obra do acaso, mas consequência de barreiras históricas, estruturais e institucionais.

Três décadas depois, é inegável que a cota produziu efeitos: ampliou candidaturas, conferiu visibilidade à participação feminina na política, promoveu presença simbólica de mulheres eleitas e alcançou resultados eleitorais antes impensáveis.

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Mas também é inegável que a distância entre o desenho normativo e sua plena concretude permanece enorme. O problema, hoje, não é a ausência de regras, mas a incapacidade do sistema político de lhes dar eficácia substantiva.

O descompasso entre representatividade e demografia

A cota permitiu que chegássemos a índices inéditos de participação feminina. Ainda assim, continuamos muito abaixo do mínimo desejável. Nas eleições municipais de 2024, por exemplo, foram 34% de candidaturas femininas no Brasil e apenas 15,06% de mulheres eleitas na Bahia, conforme dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral[2].

O avanço é evidente e gradual, mas insuficiente. Desde 1995, várias mudanças legislativas buscaram ampliar a participação feminina. A Lei de 1995 exigia que partidos reservassem 20% das vagas para mulheres nas eleições municipais, embora o total de vagas fosse suplantado em 50%.

Em 1997, a Lei 9.504 elevou a reserva para 30% nas eleições proporcionais, porém, mantendo a distorção que perdurou até 2009, quando a Lei 12.034 determinou que ao menos 30% das vagas fossem efetivamente preenchidas por mulheres.

Essa alteração, entretanto, não garante assentos. Assim, aumentou o número de candidaturas femininas, mas não proporcionalmente o número de mulheres eleitas. Observa-se, portanto, que desde o início não houve compromisso real com a paridade e, mais, seus progressos graduais esbarram em limites estruturais.

Candidaturas fictícias: sintoma, não causa

Por efeito deletério da mudança provocada pela Lei de 2009, que dispõe sobre a obrigatoriedade de apresentação de 30% de candidatas mulheres, surgiram as candidaturas fictícias, um modelo partidário de fraude às cotas de gênero. Um fenômeno que persiste na  política brasileira, porque muitos partidos tratam a cota como exigência burocrática, não como política de igualdade – realidade já apontada em estudos internacionais como o Women in Politics Map 2020, da ONU e UIP [11].

Essa subversão da finalidade da ação afirmativa produz um ciclo perverso: partidos usam mulheres para cumprir formalidades; a fraude é identificada; a responsabilização recai sobre elas, não sobre as siglas; cresce o estigma de que “mulheres seriam o problema”; e se reduz o engajamento feminino. É uma lógica que deseduca, desmobiliza e reitera desigualdades.

Anistia e baixa responsabilização partidária

Sob a pretensão de minimizar os efeitos das candidaturas fictícias foi aprovada pela Emenda Constitucional 117/2022, a aplicação de recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação política das mulheres, bem como a aplicação de recursos desse fundo e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e a divisão do tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão no percentual mínimo de 30% (trinta por cento) para candidaturas femininas.

Ao mesmo tempo, a referida emenda anistiou partidos que descumpriram o financiamento mínimo de campanhas femininas [3] – medida posteriormente incorporada pelo TSE em sua Resolução 23.604/2019 [4].

Essa anistia reverteu decisões rigorosas construídas pelo Tribunal ao longo de uma década, como nos precedentes REspe 149/PI, REspe 24342/PI e REspe 19392/PI [5], e enviou ao sistema político a mensagem de que não há consequências para a violação reiterada de direitos políticos das mulheres. Criou-se um incentivo perverso: cumprir a cota é opcional; descumpri-la é, na prática, juridicamente seguro.

Violência política e o efeito paralisante sobre a participação

Ao mesmo tempo, a violência política de gênero, amplamente documentada em pesquisas da ONU Mulheres (IBOPE/ONU Mulheres, 2018; ONU Brasil, 2019)[6] e em estudos acadêmicos nacionais – como em estudos publicados na Revista Estudos Eleitorais, do TSE [7] – é um dos principais fatores que afetam o engajamento feminino na política nacional.

Ela se manifesta por meio de boicote interno nos partidos; assédio moral, ameaças e intimidações; sabotagem de campanha; deslegitimação pública da competência feminina; pressão para desistência; e uso de mulheres como “número” para preencher a cota. Esse ambiente afeta diretamente a permanência e a reeleição. A cota abriu portas, mas não garantiu condições seguras para permanecer no espaço político.

A Súmula 73/TSE e seus efeitos assimétricos

O cenário se complica ainda mais quando em 2024, o TSE edita a Súmula 73 para uniformizar critérios de reconhecimento de fraude à cota de gênero: votação ínfima, ausência de atos de campanha e prestação de contas padronizada [8].

O objetivo era legítimo. Porém, estudos empíricos e análise jurisprudencial sobre a Súmula 73/TSE [9] demonstram que sua aplicação tem sido assimétrica: embora existam mais homens com votação zerada, as ações e cassações recaem majoritariamente sobre mulheres.

Casos analisados [10] pelos TREs da Paraíba, Minas Gerais, Mato Grosso e Bahia mostram que candidatas vítimas de boicote partidário são tratadas como suspeitas; mulheres com baixa movimentação financeira são vistas como fraudulentas, ignorando o histórico de subfinanciamento feminino (TSE, 2020; 2024); a súmula, quando aplicada mecanicamente, pune mais a vulnerabilidade do que a fraude.

Assim, um instrumento criado para proteger mulheres contra candidaturas fictícias acaba, em muitos casos, excluindo as próprias mulheres do processo eleitoral.

Entre avanços formais e eficácia substantiva

Trinta anos depois, é correto afirmar que a cota transformou a política brasileira – mas também impõe reconhecer que ela ainda não produziu sua promessa plena.

Os limites permanecem ancorados em desigualdade estrutural; violência política; subfinanciamento; anistias institucionais; aplicação punitiva da Súmula 73/TSE; ausência de compromisso partidário; e estigmatização da ação afirmativa como “favor”, “privilégio” ou “punição”. E, a pergunta que fica é: quantas décadas mais serão necessárias para que as cotas de gênero atinjam seu objetivo inicial: aumentar a representação feminina na política?

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Tal política afirmativa foi necessária e permanece indispensável. O que falta é compromisso institucional para enfrentar a sub-representação histórica; responsabilizar partidos, sem anistias; proteger candidatas contra violência política; aplicar a Súmula 73/TSE com sensibilidade contextual; combater preconceitos arraigados sobre a legitimidade das mulheres na política; e garantir competitividade real, não apenas registro de candidaturas.

Uma democracia “em espera”

O ciclo de avanços iniciado em 1995 foi essencial. Mas, a democracia paritária segue em construção e depende de medidas mais assertivas para que mulheres possam disputar, vencer e permanecer nos espaços de poder. Não se trata de negar as conquistas, mas de reconhecer que elas ainda são insuficientes diante da magnitude do desafio.

Se queremos honrar os 30 anos da cota de gênero, é necessário abandonar a ideia de que “já fizemos o bastante” e assumir a perspectiva de “em que precisamos melhorar”. Avançamos, sim, mas, ainda estamos longe do necessário. O ideal democrático exigido pela Constituição de 1988 segue como tarefa inacabada. Porém, em construção que há de ser constante e progressiva.


[1] Lei nº 9.100/1995; Lei nº 9.504/1997; Lei nº 12.034/2009.

[2] Tribunal Superior Eleitoral – Estatísticas das Eleições 2024; Estatísticas das Eleições 2020; Relatórios de Representação Feminina (2020–2024).

[3] Emenda Constitucional nº 117/2022.

[4] Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23.604/2019.

[5] Tribunal Superior Eleitoral. Precedentes: REspe 149/PI; REspe 24342/PI; REspe 19392/PI.

[6] ONU Mulheres – Pesquisa IBOPE/ONU Mulheres “Brasil 50-50” (2018); Dados sobre Igualdade de Gênero (2019).

[7] Revista Estudos Eleitorais, v. 17, 2023 – artigos sobre representatividade feminina, violência política e desigualdades de gênero.

[8] Tribunal Superior Eleitoral. Súmula nº 73/2024. TSE aprova súmula sobre casos de fraude à cota de gênero. TSE Notícias, Brasília, 11 jun. 2024. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Junho/tse-aprova-sumula-sobre-casos-de-fraude-a-cota-de-genero>.

[9] TSE. Precedentes: AgR-REspe 0601.058-72/SP, AgR-REspe 0600.002-67/SP, REspe 0600362-04.2020.6.14.0082/PA, REspe 0600458-78.2020.6.25.0028/SE, REspe 0000193-92.2016.6.18.0018/PI, AgR-REspe 0600665-11.2020.6.17.0025/PE, AgR-REspe 0600001-71.2021.6.10.0014/MA, AgR-REspe 060088041/SP.

[10] TSE. Precedentes: REspe 0600592-76.2020.6.15.0063/PB, REspe 0600170-63.2020.6.13.0029/MG. TRE-BA precedentes: REle 0600403-17.2024.6.05.0070, REle 0600439-45.2024.6.05.0107, REle 0600556-27.2024.6.05.0110, EDec-REle 0600719-05.2024.6.05.0143, EDec-REle 0600736-41.2024.6.05.0143. TRE-MT precedentes: REle 0600675-84.2024.6.11.0024, REle 0600580-75.2024.6.11.0017, REle em AIJE 60067584/MT, REle em AIJE 60058075/MT. TRE-MG precedentes: REle 0600496-91.2024.6.13.0252, AIJE 0600962-51.2024.6.13.0134, REle 0600962-51.2024.6.13.0134.

[11] United Nations & Inter-Parliamentary Union. Women in Politics Map (2020).