Ocaso da regulação independente: cuidado com o que você deseja

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Avançando através de movimentos pendulares, o modelo de agências reguladoras independentes prosperou em várias geografias ao redor do mundo. Inicialmente motivada por uma diversidade de fatores econômicos, sociais, científicos e técnicos, a criação dessas agências visava principalmente a implementação de uma regulação imparcial e especializada.

Sua atuação abrangia setores críticos como infraestrutura, meio ambiente, saúde e segurança, finanças e monitoramento de tecnologias essenciais. O denominador comum entre esses setores era a necessidade de um conhecimento técnico robusto e a mitigação da politização no processo decisório, com o objetivo de criar um ambiente mais estável e previsível, propício à atração de investimentos. 

No entanto, recentes decisões judiciais nos Estados Unidos e a deterioração da regulação independente no Brasil sinalizam uma mudança significativa neste paradigma, levantando questões cruciais sobre o futuro e a eficácia da regulação independente em ambos os países. Esse é o tema deste artigo. 

Reformas liberalizantes em infraestrutura levaram a uma nova onda nos idos de 1990: a separação vertical de indústrias até então verticalmente integradas criava espaço para entrada de novas firmas em segmentos competitivos. Nos segmentos de rede, caracterizados por economias de escala e escopo, a competição de mais de uma empresa se mostra ineficiente. Para evitar abusos da companhia monopolista, caberia à regulação disciplinar as condições de prestação de serviços.

No Brasil, teve lugar um movimento de “agencificação: entre 1996 e 2019 mais de 60 entidades reguladoras se estabeleceram. Mas não foi apenas nos números que a atuação das agências reguladoras teoricamente independentes cresceu. A entrada de novos agentes e a inovação tecnológica demandavam novas regras. A complexidade da atuação setorial e a dinâmica recomendavam ajustes cuja compreensão apenas seria possível em entidades com conhecimento especializado. A resposta veio na forma de um ímpeto regulatório. A título ilustrativo, entre 2004 e 2024, foram emitidas mais de 1.000 resoluções normativas pelo regulador de eletricidade. 

Essa especialização e a criação de regras não raro levavam a tensões e acusações de excesso de discricionariedade ou invasão de competências. Pressões do Executivo tentaram disciplinar ou conter o processo, a exemplo do programa PRO-REG, lançado pela Casa Civil em 2007. Novos instrumentos apareceram a disciplinar o processo, como a Avaliação de Impacto Regulatório (AIR).

Esse processo de alternância entre avanço e reversão ou contenção da regulação independente não é exclusivo da experiência brasileira. A fase atual é de uma retração no modelo de agências reguladoras independentes. Decisões recentes da Suprema Corte nos Estados Unidos, avançadas por uma maioria conservadora, são ilustrativas desse movimento. 

As decisões Loper e West Virginia da Suprema Corte dos EUA

A decisão Loper (do caso Loper Bright and Corner Post) da Suprema Corte dos EUA reverte um precedente de 40 anos daquela casa (sob uma composição diferente de juízes). Altera posição anterior, que conferia às comissões reguladoras deferência na interpretação de matérias legislativas, em face de sua competência técnica em temas especializados e do fato de que o Congresso lhes havia conferido em lei competências com (ampla) discricionariedade.

A decisão Loper foi precedida pelo caso West Virginia vs. EPA, que já havia enfraquecido o efeito da decisão Chevron. Ao adotar a “major question doctrine,” desloca-se para o Judiciário quaisquer questões entendidas como de maior relevância (major question), que até então os reguladores tinham sido capazes de decidir, desde que dentro dos limites de suas competências legais. 

São duas as consequências dos casos Loper e West Virginia. A primeira é conferir ao Judiciário maior discrição para intervir em decisões regulatórias, a despeito de que careça de conhecimento técnico e da especialização das agências cujas decisões questionam. A segunda consequência, e talvez a mais deletéria, é que ambos os casos devem, muito provavelmente, motivar o Congresso dos EUA a avançar em temas técnicos, até então delegados aos reguladores – que atuavam em ambiente com maior especialização e menos politização. 

O efeito líquido das ações da Suprema Corte dos EUA é muito provavelmente adverso nos dois níveis apontados. Primeiramente, por transferir decisões técnicas para agentes com menos expertise e conhecimento. Ademais, politiza o processo decisório em matérias técnicas. 

Por fim, vale destacar a dimensão política das duas decisões. Ainda que a decisão Chevron tenha sido escrita por um bem conhecido juiz conservador para reforçar a atuação dos reguladores na administração Reagan contra questionamentos de grupos ambientais progressistas, ao longo do tempo os conservadores têm se tornado mais críticos das atuação dos reguladores.

Uma explicação plausível para essa visão é a crença de que a atividade regulatória restringe os negócios. Não menos importante, há uma descrença no Estado e na burocracia. Como resultado, a reversão da doutrina Chevron já havia se tornado um objetivo essencial em círculos políticos de direita. Ironicamente, um dos juízes que reverteu a doutrina Chevron é filho de um diretor da Environmental Protection Agency (EPA), cuja autoridade era protegida pela decisão Chevron. 

Consequências práticas das decisões

Em um primeiro momento, as decisões da Suprema Corte são festejadas por conservadores e empresas, que percebem nas amarras do Estado limites à sua discricionariedade e ameaças e restrições a seus ganhos e lucros. Mas é possível que o céu não seja tão azul assim. Avaliações de pessoas com conhecimento legal e regulatório, a menos dos círculos políticos conservadores, são em geral críticas das duas decisões, ainda que haja divergências acerca de suas consequências práticas. 

Sem negar que excessos existem e que a regulação é sabidamente ineficiente, a decisão Loper suscita preocupações com potencial de aumentar custos de fazer negócios, como veremos. 

Limites aos recursos. “Tools” ou o conjunto de “ferramentas” à disposição do regulador é um dos instrumentos de boa governança regulatória (Brown et al, 2006). O regulador precisa de recursos para bem exercer suas competências, seu poder-dever. Se as agências precisam aumentar suas respostas a demandas do Judiciário e atuação do Legislativo, diminui o espaço para responder a suas atividades necessárias. Em consequência, elevam-se os tempos de resposta, e com eles os custos. 

Menos certeza. Ao se deslocar o centro decisório de órgãos técnicos para outros de natureza política, diminui a chance de que as decisões a serem tomadas sejam viáveis, factíveis ou capazes de gerar incentivos adequados. Não raro aparecem objetivos conflitantes nas normas. Considere o trilema de política energética subjacente ao ODS 7, que preconiza affordability, promoção de energia limpa e segurança energética. Se os instrumentos e regras não forem bem articulados, demandas por mais segurança energética ou mais investimentos em tecnologia limpa comprometem a capacidade de pagamento dos usuários.  

Falta de harmonização. No caso dos Estados Unidos, o recurso ao Judiciário pode se traduzir em menos uniformidade regulatória. Diferentes jurisdições aplicando diferentes regras aumentam os custos de fazer negócios para investidores que atuam além de fronteiras, por exemplo, estaduais. 

Tendências no papel da regulação: de volta ao caso do Brasil

Argumentamos que esse processo de perda de espaço ou deferência à regulação é muito mais abrangente geograficamente do que aparenta ao primeiro olhar. Ainda que não tenhamos no Brasil um marco temporal como a decisão Loper, a deterioração do modelo de regulação independente é processo em curso e que conta com o “apoio” do segmento empresarial. Iludidos ou extasiados com o canto da sereia de maior latitude para atuar, prosperam os apelos diretos ao Congresso ou ao Judiciário, com efeitos líquidos ainda incertos. 

Uma vertente dessa corrosão é a inegável politização dos processos decisórios, a começar pelas nomeações dos dirigentes das agências reguladoras. Enumerar evidências é desnecessário. Não apenas são nomeadas pessoas com escassa competência; uma vez empossadas, suas respostas a demandas de grupos de interesse se revelam patentes. 

Deslocamento do poder para Congresso. No caso do setor de energia, os pleitos são discutidos no Congresso, com produção e propostas de Projetos de Decretos Legislativos, pleitos apensados a Medidas Provisórias, que ganham literalmente centenas de emendas para objetos estranhos ao seu objeto núcleo. Demandas legítimas de incentivos a grupos não raro produzem efeitos incoerentes. Para citar o mais recente, a Medida Provisória das Energias Renováveis e da Redução Tarifária na região amazônica que busca reduzir tarifas aumenta subsídios cruzados para tecnologias sabidamente competitivas. 

Assistimos a uma perda de deferência ao regulador mesmo em temas eminentemente técnicos. Esse é o caso das tentativas de alterar regras tarifárias da Aneel aplicáveis às redes de eletricidade. O assunto foi objeto de Projeto de Decreto Legislativo

No item dos instrumentos e recursos, há prejuízo à capacidade do regulador, que enfrenta dificuldades de retenção de bons quadros técnicos. Maiores salários em outros entes na Administração por certo canibalizam o capital humano na Administração.

A competição no setor privado encontra presas fáceis, acirrando o conhecido problema de revolving doors” – talentosos e experientes reguladores são contratados por empresas e consultorias que valorizam o conhecimento e poder de influência, que se tornam mais fáceis de serem exercidos com um regulador enfraquecido. Somam-se a isso pressões internas, quando o processo decisório se encontra corroído por disputas que nada têm a ver com o salutar debate de ideias.

Essa perda de capacidade onera os quadros remanescentes e aumenta os prazos de resposta do regulador. Vejam-se os atrasos da ANP nas entregas da agenda regulatória e seus impactos sobre a reforma do gás

Falta de harmonização é problema crítico na regulação de gás, onde um carregador que deseje ofertar gás em múltiplos estados se depara com fragmentação e heterogeneidade nas regras de acesso de diferentes transportados e patchwork em regulações estaduais de abertura do mercado. Resultado: aumento dos custos de fazer negócios. 

Saldo líquido

Há quem compare as recentes decisões Loper e West Virginia da Suprema Corte dos EUA com um coup d’etat. Ao avocar para si poderes para decidir temas nos quais carece da expertise dos entes reguladores cujo poder desloca, a corte reverte uma prática estabelecida com base na doutrina Chevron que delegava às agências julgados em temas regulatórios nas quais têm elas conhecimento.

Talvez se trate de mais do que um golpe, ao tornar de fato impossível para o Congresso prosseguir com sua prática em matérias de grande complexidade – legislar em alto nível e delegar aos reguladores o detalhamento e a implementação das políticas, de modo a mitigar interferência política. 

Caberá agora ao Congresso legislar adentrando em maiores detalhes para evitar ingerências de grupos de interesse com demandas específicas. 

Para os reguladores, o resultado não é encorajador. Sua competência técnica perde espaço e utilidade. Muitos daqueles com os quais a sociedade contou para robustos processos decisórios terão incentivos a buscar emprego em outras praças nas quais se sintam mais bem utilizados. O resultado líquido é maior politização, mais demanda de grupos de influência, decisões menos informadas, mais caóticas e menos coerentes. 

Curioso como a ordem dos fatores não parece afetar o produto. Diferenças a parte na arquitetura dos poderes, tanto lá quanto aqui assistimos a um movimento em que a regulação técnica perde espaço com o deslocamento do processo decisório para Legislativo e Judiciário. Difícil imaginar como o efeito líquido pode melhorar o ambiente de negócios e contribuir para reduzir custo de capital em tempos de transição energética