Em novembro de 2023, o governo federal lançou um novo programa de regularização tributária por meio da edição da Lei 14.740/23.
Abriu-se ao contribuinte inadimplente, cujos créditos tributários ainda não haviam sido constituídos até o advento da norma, a oportunidade de regularização mediante pagamento de 50% à vista do valor devido e o restante parcelado.
Permitiu-se, ainda, o uso de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa, além da exclusão de juros e multa, desde que realizada a confissão dentro do prazo de adesão da norma.
A autorregularização incentivada teve, assim, três objetivos:
Permitir ao contribuinte inadimplente a regularização dos créditos que ainda não tinham sido constituídos, ou seja, fora do sistema de cobrança da Fazenda Nacional;
Garantir à União Federal, em tempos de arroxo fiscal, incremento da arrecadação de créditos tributários cuja expectativa de retorno era baixa; e
Reduzir a litigiosidade, permitindo o encontro de contas facilitado em troca da denúncia espontânea e do pagamento.
O que não se esperava, contudo, era que a Lei 14.740/23 fosse, ao contrário do seu objetivo inicial, causar litigiosidade.
Isto porque, o Judiciário tem sido acionado para conceder liminares que assegurem aos contribuintes a inclusão dos tributos correntes dos meses de janeiro, fevereiro e março de 2024 no programa da autorregularização tributária.
O principal argumento trazido à apreciação do Poder Judiciário consiste na afirmação de que a lei expressamente autorizou a inclusão dos débitos constituídos no primeiro trimestre de 2024, sendo ilegal que a Receita Federal limite a inclusão unicamente dos tributos que ainda não tenham sido declarados, cujo vencimento original seja até 30 de novembro de 2023.
Este entendimento se baseia em uma interpretação isolada e atécnica do inc. II, do §1º, do art. 2º da Lei 14.740/23 e do inc. II, do art. 3º da IN RFB nº 2168, de 2023.
O primeiro ponto a ser objeto de debate neste artigo consiste em jogarmos luzes acerca da forma como uma lei deve ser interpretada. A interpretação isolada não se sustenta diante da interpretação sistemática, onde incisos e parágrafos guardam relação com o caput do dispositivo em que inseridos, assim como com todo o diploma legal (leitura do art. 10 e 11 da LC 95/98). Não só isso, nenhuma norma tributária pode ser interpretada de forma isolada, fora do seu sistema tributário, onde o CTN figura como norma geral.
Dessa forma, o arcabouço legal da Lei 14.740/23 é evidente ao tratar, em todas as oportunidades possíveis, em créditos vencidos e não constituídos no momento de edição da norma legal, a denotar claramente que a inclusão no programa de autorregularização só poderia ser do passivo tributário, dos créditos não regularizados, não sendo possível cogitar da inclusão dos débitos correntes.
Esta construção é lógica: “regularizar” é tornar adimplente um passivo, “pôr em dia”. Os créditos tributários correntes, aqueles cujos fatos geradores sequer ainda ocorreram, não carecem de regularização, mas de pagamento dentro do vencimento.
A leitura mais indicada, portanto, é aquela em que a norma legal previu dois requisitos cumulativos para a inclusão no programa em análise: (1) tributos que “ainda não tenham sido constituídos até a data da publicação” da lei; e, (2) que “venham a ser constituídos entre a data da publicação da lei e o termo final do prazo de adesão”.
Não se trata de incluir créditos com vencimento anterior ao advento da lei ou créditos constituídos dentro dos 90 dias após a promulgação da lei. A lei foi clara ao utilizar o conector “e”, significando requisitos cumulativos e não alternativos.
Tal interpretação encontra-se em consonância não só com toda a Lei 14.740/23, bem como com o CTN, cujo art. 180, ao tratar da anistia, limita que esta só pode alcançar as “infrações cometidas anteriormente à entrada em vigor da lei que a concede”.
A leitura isolada do inc. II do §1º do art. 2º da Lei 14.740/23 e do inc. II do art. 3º da IN RFB 2168, de 2023, como tem sido defendida pelos contribuintes no Judiciário, afronta o CTN e a própria legislação em que inserido o dispositivo.
As orientações normativas da Receita Federal não trouxeram qualquer inovação no ordenamento jurídico, apenas esclarecem aquilo que já decorre da própria norma a que diz respeito. Ilegal seria a Lei 14.740/23, se houvesse previsto a possibilidade de inclusão de débitos tributários correntes em clara afronta ao art. 180 do CTN.
Ademais, o objetivo da norma, como antecipado, era trazer para a regularidade fiscal aqueles devedores cujos créditos tributários, já vencidos, sequer haviam ainda sido constituídos. De sorte que haveria o incremento da arrecadação tributária ao ofertar a anistia tributária em face da denúncia espontânea, eliminando a necessidade de cobrança administrativa e judicial, reduzindo, assim, a litigiosidade.
A pretensão dos contribuintes de inclusão dos créditos correntes do primeiro trimestre de 2024, ao contrário, importa em sensível diminuição da arrecadação tributária em período de arroxo fiscal e déficit das contas públicas. Esta interpretação, ainda, não reduz créditos de estoque em cobrança, sequer reduz o litígio, posto que em nenhum momento representa autorregularização, mas mero pagamento dos fatos geradores recentes.
Em um momento de incremento do diálogo entre fisco e contribuinte com vistas a redução do contencioso administrativo e judicial, lides como a acima explanada caminham na direção oposta ao objetivo comum que deve nortear a relação fisco e contribuinte, incrementando o litígio de forma irracional e ilógica.