A Lei 14.208/2021 introduziu no cenário político e eleitoral uma nova forma de aliança entre agremiações partidárias: a federação. O instituto se situa em um nível de complexidade e envolvimento entre os partidos mais perene que as coligações eleitorais.
A coligação é uma união entre partidos visando unicamente a disputar o pleito conjuntamente, sendo desfeita em sequência ao fim da eleição, ficando os partidos livres para fazerem suas alianças parlamentares como assim desejarem. Com a Emenda Constitucional 97/2017, as coligações foram vedadas para as eleições proporcionais, sendo admitidas apenas para o pleito majoritário desde as eleições municipais de 2020.
Já a federação partidária exige um compromisso muito maior entre os partidos que dela fazem parte. Em primeiro lugar, as federações têm caráter nacional, ou seja, a decisão pela aliança é tomada pelos órgãos diretivos nacionais e deve ser observada e respeitada pelas esferas estaduais e municipais. Com a decisão pela federação aprovada e registrada perante o TSE, as agremiações unidas passam a atuar como se fossem um único partido, mas com a identidade e autonomia de cada uma sendo asseguradas.
A atuação unificada dos partidos federados ocorre tanto em âmbito eleitoral como parlamentar. Nas eleições, os partidos federados apresentam lista comum de candidatos ao pleito proporcional e não concorrem entre si no pleito majoritário, escolhendo juntos sobre seus rumos e postulantes. Já na seara legislativa, a federação pressupõe uma atuação conjunta dos eleitos, respeitada a independência dos parlamentares e a autonomia de cada partido que a compõe.
Ademais, há obrigatoriedade de os partidos federados permanecerem juntos pelo prazo mínimo de quatro anos, com graves consequências para o rompimento prematuro: (i) proibição de ingressar em federação e de celebrar coligações nas duas eleições seguintes; (ii) vedação de acesso ao fundo partidário pelo período remanescente até completar aquele prazo mínimo.
No ano de 2022, três federações se formaram: Federação Brasil da Esperança, composta por PT, PC do B e PV; Federação PSDB Cidadania; e Federação PSOL Rede.
Em seguida à aprovação da Lei 14.208/2021, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 23.675/2021, alterando a Resolução 23.609/2019, para adequar o regramento sobre o processo de escolha e registro dos candidatos, inclusive adaptando-o para abranger a nova modalidade de aliança.
A Resolução 23.609/2019 já previa, em seu art. 2°, §1°, que o partido que tivesse suspensa a anotação do órgão partidário, em razão do julgamento de contas anuais como não prestadas, ficaria impedido de participar das eleições naquela circunscrição, o que poderia ser regularizado até a data da convenção para escolha de seus candidatos.
Esclarece-se que, após o julgamento das contas anuais como “não prestadas”, para suspender a anotação do órgão partidário, é necessária a instauração de procedimento próprio pelo Ministério Público Eleitoral, assegurada a ampla defesa e o contraditório.
A suspensão do órgão partidário só se consolida após o trânsito em julgado do procedimento, a qual poderá ser revertida por meio do “Requerimento de Regularização de Omissão de Prestação de Contas Eleitorais” a ser instaurado pelo partido interessado. Se o partido deixar de prestar contas e tiver seu órgão partidário suspenso após o trânsito em julgado do procedimento acima narrado, deve regularizar-se até a data de sua convenção, sob pena de ficar impedido de disputar a eleição naquela circunscrição.
Ocorre que a Resolução 23.675/2021 inseriu o §1°-A ao artigo 2° da Resolução 23.609/2019, dispondo o seguinte: “se a suspensão a que se refere o § 1º deste artigo recair sobre órgão partidário de qualquer dos partidos que integre uma federação, esta ficará impedida de participar das eleições na circunscrição respectiva.”
Ou seja, se houver a suspensão de órgão partidário de uma das agremiações federadas e não havendo sua regularização até as convenções, mesmo a(s) outra(s) estando adequada(s), todos os partidos da federação naquela circunscrição sofrerão as consequências, ficando impedidos de lançar candidatos[1].
De início, cabe pontuar que o TSE, ao tratar de tal tema, extrapolou seu poder regulamentar previsto no art. 105 da Lei 9.504/97[2] e no art. 23, IX, do Código Eleitoral[3], posto que criou norma a qual não encontra correspondência interpretativa seja na Lei das Federações ou na interpretação sistêmica dos dispositivos que regem a autonomia partidária e a prestação de contas das agremiações.
O mencionado dispositivo foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.620, movida conjuntamente por todos os partidos integrantes de federação, tendo sido pleiteada medida cautelar para suspender a eficácia do dispositivo questionado até o julgamento definitivo da ação.
Sumariamente, há que se ressaltar a possibilidade do controle abstrato de constitucionalidade de resoluções do TSE, desde que o dispositivo impugnado possua densidade normativa. Nesse sentido encontra-se, por exemplo, a ADI 3.345/DF, de relatoria do ministro Celso de Mello[4].
A ADI 7.620 tem como principal fundamento a alegação de que o dispositivo impugnado viola a autonomia partidária, prevista no §1° do art. 17, da Constituição[5] e pela própria Lei das Federações, a qual assegura, no art. 11-A, §2°, “a preservação da identidade e da autonomia dos partidos integrantes de federação”.
Paralelamente, os partidos autores da ADI argumentam que a Lei 14.208/2021 nada dispôs sobre a extensão das consequências da suspensão do órgão partidário para todos os partidos federados naquela circunscrição, o que extrapolaria o poder regulamentar do TSE.
Anotou-se, ainda, que a redação do dispositivo impugnado permite uma compreensão retroativa, de modo que todos os partidos federados poderão sofrer consequências por contas não prestadas inclusive anteriores à formação da federação. Utilizou-se também como argumento a aplicação analógica do disposto no art. 37, §2°, da Lei dos Partidos Políticos, Lei 9.096/95, segundo o qual “será aplicada exclusivamente à esfera partidária responsável pela irregularidade, não suspendendo o registro ou a anotação de seus órgãos de direção partidária nem tornando devedores ou inadimplentes os respectivos responsáveis partidários”.
Ou seja, a legislação infraconstitucional dispôs que sequer dentro da mesma agremiação as instâncias superiores são responsáveis pelas questões financeiras dos diretórios inferiores, o que tornaria desarrazoado tornar um partido responsável pelas consequências da não prestação de contas de outro partido dentro da mesma federação.
Por fim, a petição inicial da ADI argumenta que o dispositivo impugnado viola o princípio do pluralismo político[6], posto que sua aplicação impediria o acesso do eleitorado às diferentes alternativas ideológicas, limitando as opções de escolha.
Os fundamentos apontados acima foram utilizados para justificar a plausibilidade jurídica do pedido para a concessão de medida cautelar. Já o risco de grave ou difícil reparação foi embasado nas seguintes razões: (i) prazo de 6/4/24[7] como termo final para filiação daqueles interessados em concorrer para o pleito de 2024, posto que a aplicação de tal dispositivo poderia afastar o interesse de candidatos em agremiações federadas, bem como ocasionar desfiliações; (ii) impedimento de diversos órgãos partidários de participar das eleições.
Esclarece-se que, apesar de a ação ter sido proposta em 3/4/24, portanto, três dias antes do prazo final para filiações partidárias, somente em 3/7/24 que a medida cautelar foi apreciada pelo relator no STF, ministro André Mendonça.
A fundamentação da ADI é coerente e indica a inconstitucionalidade do dispositivo atacado, não só pela usurpação da função legislativa, mas pela sua dissonância com a interpretação sistêmica dos princípios constitucionais e com a legislação infraconstitucional eleitoral e partidária.
Tal contradição, inicialmente, foi reconhecida pelo ministro relator, que entendeu por bem deferir medida cautelar para suspender a eficácia do §1°-A, do art. 2°, da Resolução TSE 23.609/2019, com efeitos ex nunc, aguardando-se a manifestação do Pleno. Em exame preambular, o ministro defendeu a aparente inconstitucionalidade do dispositivo questionado, apontando a possibilidade de partido apresentar candidatura mesmo na hipótese de suspensão do órgão partidário, pela não prestação de contas, de outra agremiação a qual esteja federado[8].
O fundamento principal do voto condutor foi a preservação da autonomia partidária, tendo o Relator manifestado que a obrigação de prestar contas é “particular e individualizada”, mesmo no caso de agremiações que compõem federação, posto que a própria normativa infraconstitucional impôs a cada partido, individualmente, o dever de prestar contas e responder pelas sanções que lhe forem aplicadas, não existindo nenhum procedimento de prestação de contas pela federação por si só.
Nesse sentido, encontram-se os parágrafos 1°, 2° e 3° do art. 10 da Resolução TSE 23.670/2021[9], os quais preveem que a regularidade das contas da federação é verificada por meio da prestação de contas relativa a cada partido que realizou o gasto, mesmo na hipótese de a despesa ter sido efetuada em prol da federação. Ou seja, mesmo em relação aos gastos da federação, não há uma prestação de contas unificada.
Diante disso, o ministro André Mendonça ponderou: “não vejo como estender o impedimento à apresentação de candidatura, que recaia sobre determinado partido político em razão do descumprimento da sua obrigação individual de prestação de contas anual, aos demais partidos com ele federados”.
Anotou, ainda, que a situação se torna mais crítica quando se estende a responsabilidade e as consequências pela não prestação de contas para momento anterior à criação das federações, o que eleva o ônus das agremiações de regularizarem todos os partidos que compõe aquela aliança.
O ministro, então, entendeu inicialmente que a manutenção da eficácia do dispositivo impugnado configura ofensa à segurança jurídica, razão pela qual determinou sua suspensão cautelar. Com a suspensão da eficácia do §1°-A, do artigo 2°, da Resolução 23.609/2019, não ficam os demais partidos integrantes de federação impedidos de lançar candidatura na hipótese de um deles estar com o órgão partidário suspenso pela não prestação de contas.
Contudo, após a decisão cautelar, a presidência do TSE encaminhou ofício apresentando “informações suplementares e urgentes” indicando “reflexos diretos, imediatos e incontornáveis tecnicamente” da medida cautelar.
Em resumo, apontam que o sistema utilizado para contabilização dos votos não permite a separação dos votos de legenda recebidos pelos partidos federados suspensos. Ou seja, se o eleitor votasse somente na legenda do partido federado suspenso, o voto seria computado para toda a federação, beneficiando-a.
Diante disso, o ministro André Mendonça reapreciou a medida cautelar e, em 18/7/24, indeferiu o pedido de suspensão do dispositivo atacado, prevalecendo o disposto na Resolução: a suspensão do órgão partidário de uma agremiação federada atinge aos demais partidos, impedindo-os de disputar o pleito de 2024, se não houver a regularização até convenção.
A nova decisão é problemática por vários pontos. Em primeiro lugar pela questão temporal: a revogação da suspensão do dispositivo ocorreu dois dias antes do início do prazo legal para as convenções partidárias (20/7/24 a 5/8/24), embaralhando o jogo político e dando um prazo extremamente exíguo para a regularização de órgão partidário suspenso.
Em segundo lugar, é preciso apontar que o TSE teve a oportunidade de se manifestar previamente ao deferimento da medida cautelar, podendo trazer tal informação técnica, mas nada apontou nesse sentido. Somente após a decisão cautelar que o TSE trouxe as informações que causaram a revogação da decisão de 3/7/24 pelo ministro relator.
Por último, há o mérito da decisão: o debate envolve o tratamento isonômico entre partidos isolados e federações partidárias. A revogação da medida cautelar acolheu argumento de que a federação partidária teria um benefício, ao passo que poderia ter para si computado voto de legenda destinado à agremiação suspensa.
Contudo, a manutenção do dispositivo atacado na ADI também desequilibra a balança: as federações partidárias terão ônus muito maior do que os demais partidos para se regularizarem e, caso não o façam, ficarão impedidas de disputar a eleição naquela circunscrição. Sob o ponto de vista democrático, parece muito mais nocivo impedir diversos partidos e candidatos de participarem do pleito, ao invés de beneficiar as federações com eventuais votos de legenda destinado às agremiações com órgão partidário suspenso, as quais sequer teriam candidatos.
Ao que parece, a nova decisão desequilibra o jogo democrático em desfavor das federações.
[1] Por exemplo: considerando a Federação Brasil da Esperança, composta pelo PT, PV e PC do B, em um município A, tendo o PV tido a suspensão de seu órgão municipal pela falta de prestação de contas anuais e não havendo sua regularização até a convenção para escolha dos candidatos, toda a federação ficará impedida de participar do pleito na circunscrição do município A, de modo que a omissão do PV afeta também a participação do PT e o PC do B naquele município.
[2] Art. 105, Lei 9.504/97. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos.
[3] Código Eleitoral, Art. 23. Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior: (…) IX – expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste código;
[4] (…) Resolução do Tribunal Superior Eleitoral, que, impugnada na presente ação direta, encerra, em seu conteúdo material, clara “norma de decisão”, impregnada de autonomia jurídica e revestida de suficiente densidade normativa: fatores que bastam para o reconhecimento de que o ato estatal em questão possui o necessário coeficiente de normatividade qualificada, apto a torná-lo suscetível de impugnação em sede de fiscalização abstrata. DJE 154, de 19/08/2010 .
[5] Art. 17, §1°, Constituição. É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.
[6] Art. 1º, Constituição. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) V- o pluralismo político.
[7] Art. 9º, Lei 9.504/1997. Para concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de seis meses e estar com a filiação deferida pelo partido no mesmo prazo.
[8] De tal forma, se os partidos A, B e C estão federados e o partido A está com o órgão partidário municipal suspenso pela não prestação de contas, somente o partido A ficará impedido de lançar candidatos naquele município, preservando os direitos dos partidos B e C de fazê-lo, posto que estão regularizados.
[9] Art. 10, Resolução TSE n° 23.670/2021. A manutenção e o funcionamento da federação serão custeados pelos partidos políticos que a compõem, cabendo ao estatuto dispor a respeito.
1º É lícito aos partidos realizar gastos em prol da federação com recursos do Fundo Partidário na manutenção e no funcionamento da federação, desde que não integrem parcela cuja aplicação é vinculada por lei.
2º A prestação de contas da federação corresponderá àquela apresentada à Justiça Eleitoral pelos partidos que a integram e em todos os níveis de direção partidária.
3º A regularidade dos gastos em prol da federação será verificada na respectiva prestação de contas do partido político que realizou o gasto.