“Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação”
(TRINDADE, 2008:162 apud CHAGAS, 2017)
O poema acima (“Sou negro”) exalta a literatura militante do poeta Francisco Solano Trindade, revelando seu orgulho de pertencer a sua identidade descrevendo como seus ancestrais desempenharam papéis relevantes nas lutas de resistência à escravidão (CHAGAS, 2017).
Ainda que o foco desse artigo não seja a exposição histórica, mas uma análise de novas tecnologias, nada mais adequado do que brevemente expor algumas premissas relacionadas ao racismo estrutural. Já é reconhecido que:
“Quando a criminologia positivista não questiona a construção política do direito penal (como, por quê, e para quê se ameaçam penalmente determinadas condutas, e não outras, que atingem determinados interesses, e não outros, com o resultado prático, estatisticamente demonstrável, de se alcançar sempre pessoas de determinada classe e não de outra)” (BATISTA, 2011).
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Ou seja, não se torna plausível aderir a um enfoque recorrente que não questiona a estrutura social, ou suas instituições jurídicas e políticas – expressivas de consenso geral (SANTOS, 2022) sem nenhuma reflexão crítica.
É inevitável se aprofundar nos vários textos existentes no debate sobre segurança pública e persecução penal. Afinal, o tema, embora complexo, é essencial para entender a realidade do país, especialmente quando temos uns tantos elementos que indicam que que ainda existe um genocídio da população negra (RIBEIRO, 2019).
Logo, é impossível falar de segurança pública ignorando a completa vulnerabilidade e exposição que a população negra ainda se encontra no Brasil. E Ignorar esse fato é contribuir com o racismo estrutural. E nesse ponto, nos cabe rememorar a canção “Dai a Cesar o que é de Cesar” do rapper Cesar Mc expressa exatamente essa ideia quando diz: “Racismo é o câncer estrutural. Esse fato não depende da sua opinião. Ou você coopera com essa estrutura, ou você ajuda na demolição”.
Como bem exemplifica Abdias Nascimento, em sua obra Jornada Negro-Libertária, após a Lei Aurea a escravidão foi abolida formal e juridicamente, portanto, o negro deixou de ser escravo de seu senhor para ser “escravo da fome, escravo do sereno, escravo da prostituição, escravo do crime. Foi isso que a sociedade dominante reservou para o negro, logo após a abolição” (NASCIMENTO, 1984).
Mais recentemente, o fenômeno do reconhecimento facial tem sido ferramenta para ratificar o racismo estrutural já anteriormente constatado quando do reconhecimento de pessoas não automatizado.
Ou seja, já era discutível os impactos do racismo estrutural no reconhecimento fotográfico por intermédio do álbum de suspeitos, devendo as formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal serem observadas (MATIDA, 2021).
Não à toa, o STJ, ao firmar a tese do Tema Repetitivo 1.258 em que a questão submetida a julgamento era definir o alcance a determinação contida no art. 226 do Código de Processo Penal e se a inobservância do quanto nele estatuído configura nulidade do ato processual, embora reconheça a necessidade de observância de tal dispositivo tanto em sede inquisitorial quanto em juízo, dá certa margem para realização de novo procedimento (item 3).
Também aponta a desnecessidade de realizar o procedimento formal quando não se tratar de indivíduo desconhecido com base na memória visual de suas características físicas percebidas no momento do crime, mas, sim, de mera identificação de pessoa que o depoente já conhecia anteriormente (item 6) – ampliando, ao nosso sentir, a subjetividade do procedimento, mesmo diante da aplicação do precedente de observância obrigatória.
E a situação é um tanto mais delicada, quando analisada a problemática do uso do reconhecimento facial e ainda mais, ampliado pelo contexto crescente das denominadas cidades inteligentes ou smart cities. É que os algoritmos racistas são um reflexo dos preconceitos e desigualdades existentes nas sociedades em que são desenvolvidos (SOUZA JÚNIOR, p. 127).
Mas a tendência é de que se crie um cenário imaginário de igualdade e neutralidade desses sistemas, fundamentada, primeiramente, na percepção de que o Brasil é um país composto por diferentes raças, e, em segundo plano, na promoção da expressão de uma identidade nacional homogênea, “iguais nas diferenças”.
A realidade é que esse discurso ignora o fato de a sociedade brasileira ter nascido no racismo, e sofrer com esse mal até os dias atuais. Sobre esse tema com Sueli Carneiro (2008):
“[…] São argumentos de fácil aceitação pelo que reiteram das ideologias presentes no senso comum em que o elogio à mestiçagem e a crítica ao conceito de raça vem se prestando historicamente, não para fundamentar a construção de uma sociedade efetivamente igualitária do ponto de vista racial, e sim para nublar a percepção social sobre as práticas racialmente discriminatórias presentes em nossa sociedade”.
O uso dessa tecnologia acarreta a perpetuação do racismo estrutural acaso não perpassada por uma filtragem crítica e social. Afinal, as políticas de segurança pública sempre foram eivadas pelo racismo, entretanto, nesse contexto, a autoridade transfere a responsabilidade para a tecnologia se valendo de um aspecto de suposta neutralidade desses sistemas.
A análise proposta evidencia que a adoção de tecnologias, como o reconhecimento facial, no âmbito das políticas de segurança pública, especialmente na ocasião em que está atrelado a um sistema penal historicamente racializado e seletivo, aprofunda e perpetua desigualdades históricas, enraizadas pelo racismo estrutural.
A fictícia neutralidade desses sistemas, abraçada pela alegação de aperfeiçoamento tecnológico e pela suposta objetividade do algoritmo, ignora a origem política, econômica e social desses dispositivos que foram formados a partir de dados e padrões provenientes de uma sociedade racista.
Observando a gradativa aplicação dessas tecnologias de identificação sem uma legislação específica e sem o rigoroso respeito às formalidades dispostas no artigo 226, do Código de Processo Penal, tal cenário configura grave risco e compromete a legalidade do reconhecimento feito, podendo implicar mais do que nulidades processuais, mas um dano humanitário imensurável.
Nesse sentido, tem-se que a implementação de tais instrumentos tecnológicos, como o de reconhecimento facial, não pode ser autônoma e sem um controle jurídico (humano). Sob pena de se autolegitimar vieses e estigmas pré-existentes, vestindo uma roupagem de eficiência e modernização, sobrepondo-se ao Estado Democrático de Direito. Por essa razão, urge não somente o respeito às normas processuais penais, mas também uma análise crítica, vigilante e humanitária, em especial às populações historicamente marginalizadas pelo sistema de justiça criminal – sendo imprescindível, analisar e compreender criticamente, os impactos das novas tecnologias na persecução penal e segurança pública.
CHAGAS, Camila Pizzolotto Alves das. Solano Trindade: luta, poesia e teatro Possibilidades de análise de raça e classe social no Brasil (1940 – 1960) / Camila Pizzolotto Alves das Chagas. – 2017. 118 f. Orientadora: Sonia Regina de Mendonça. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2017.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12° Ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Revan, 2011. P. 29.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 5. Ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. P. 20.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. P. 102-103.
MATIDA, Janaina. Considerações epistêmicas sobre o reconhecimento de pessoas: produção, valoração e (in)satisfação do standard probatório penal. In: Código de Processo Penal: estudos comemorativos aos 80 anos de vigência: Vol. 2. Guilherme Madeira, Gustavo Badaró e Rogerio Schietti Cruz, coord. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. P. 141-153.
STJ. TEMA REPETITIVO 1.258. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1258&cod_tema_final=1258/. Acesso em 15 jul 2025.
MC, Cesar. Dai a Cesar o que é de Cesar. In: MC, Cesar. Dai a Cesar o que é de Cesar. ONErpm, 2021.
NASCIMENTO, Abdias. Jornada Negro-Libertária. 1ª ed. Rio de Janeiro: IPEAFRO/Afrodiáspora, 1984. P. 19.
CARNEIRO, Sueli. Ideologia Tortuosa. 2008. Disponível em: https://www.geledes.org.br/ideologia-tortuosa/. Acesso em 19 mai 2025.