Nos últimos cinco anos, a economia digital desafiou as autoridades antitruste globalmente, ensejando uma discussão sobre a necessidade de adaptar as tradicionais ferramentas de análise[1], o que resultou em diferentes iniciativas regulatórias, como o Digital Markets Act (DMA), um marco para a regulação das plataformas digitais que entrou em vigor em maio de 2023 e, a partir de março deste ano, passará a permitir a aplicação de sanções às empresas identificadas como gatekeepers (isto é, ofertantes de “core platform services”).
Para além das propostas de regulação ex ante, ao debater sobre o desenho das novas fronteiras do processo competitivo, a literatura antitruste concebeu novas teorias do dano para endereçar os problemas trazidos pelas plataformas, classificados por Coutinho e Kira (2021) em quatro conjuntos: (i) aumentos de preços não monetários; (ii) redução de qualidade; (iii) redução de escolha e efeitos deletérios à inovação; e (iv) tratamento preferencial a certos produtos/serviços[2].
Dentre as concepções teóricas elaboradas na era da economia digital, o self-preferencing, ou “autopreferência” é certamente um dos mais proeminentes. O termo refere-se à prática em que um agente econômico utiliza sua posição em uma etapa da cadeia produtiva para favorecer seus próprios produtos ou serviços em outro mercado adjacente, em detrimento de seus concorrentes[3], podendo ser considerado tanto como uma categoria jurídica de conduta[4], quanto como uma teoria de dano em si[5].
No julgamento do caso Google Shopping[6], a Comissão Europeia concluiu que o Google, ao deter uma posição dominante, utilizou essa vantagem de maneira discriminatória para manter um monopólio artificial no mercado downstream. A conduta resultou em distorções à concorrência, criando uma “alavancagem artificial”. O Google foi condenado por promover ilegalmente seu serviço de comparação de compras, favorecendo-o na função de busca e obtendo uma vantagem injusta em relação a outros serviços na mesma plataforma.
No Brasil, o caso Google Shopping foi julgado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em junho de 2019, sendo arquivado por maioria, conforme voto do relator Bandeira Maia. No voto, Maia não mencionou os termos “self-preferencing”, “self-preference” ou “auto preferência”, que foram abordados apenas no Voto-Vogal da Conselheira Paula Farani[7]. Após esse caso, apenas quatro outros processos mencionam explicitamente esses termos[8], sem que fossem utilizados como motivação para uma eventual condenação por infração econômica.
Nos Estados Unidos, o termo self-preferencing é introduzido pelas cortes norte-americanas somente em 2021. Entretanto, nos escassos casos debatidos no contexto do Direito Antitruste (apenas três, para ser preciso[9]), todos exibem peculiaridades associadas à economia digital. Até o momento, nenhuma decisão reconheceu de maneira conclusiva a prejudicialidade da alegada conduta a ponto de condenar as empresas rés por self-preferencing.
A transversalidade dos sistemas antitruste é uma das características que os distinguem da regulação setorial, isto é, ao invés de especializar-se em determinado mercado, o Direito da Concorrência preocupa-se com a manutenção do processo competitivo em todos os setores produtivos, o que naturalmente exige uma aplicação cuidadosa e contextualizada das normas, a depender das características de cada uma das cadeias produtivas analisadas.
Um exemplo é a modificação do Jefferson Parish Test pelas cortes norte-americanas ao analisar mercados digitais ou altamente dependentes de tecnologia. Inicialmente aplicado em 1984 para um caso de venda casada relacionado a um contrato de exclusividade hospitalar com uma empresa de serviços de anestesia[10], o teste é posteriormente adaptado nos casos U.S. v. Microsoft Corp[11] e Epic Games v. Apple[12].
Assim, tendo sido inicialmente concebido como um instrumento para auxiliar na detecção de efeitos anticoncorrenciais em casos de venda casada no segmento hospitalar, precisou ser substancialmente ajustado quando utilizado no contexto do mercado de software/hardware e mais tarde, no mercado de jogos digitais, de forma que não surtisse o efeito contrário ao originalmente pretendido, isto é, de incentivar a concorrência.
Pergunta-se então se, ao realizarmos o caminho contrário, isto é, na importação de uma teoria, que sequer está consolidada no contexto da economia digital, para mercados convencionais, faria sentido esta simples transposição? No Brasil, casos que envolvam self-preferencing serão rotulados como condutas de natureza unilateral que envolvam a exploração abusiva de uma posição dominante, como sugere a OCDE (2022). Nestes casos, o que a jurisprudência nos mostra é que algum tipo de balancing entre os efeitos positivos e negativos de uma conduta seria necessário. Ainda assim, na ausência das características de uma economia digital, faria sentido tratar de self-preferencing como uma teoria do dano em si?
É o que parece estar sendo feito no Inquérito Administrativo aberto pelo Cade em que se investiga o mercado de transporte marítimo de contêineres, notadamente na relação entre empresas de navegação e terminais de contêineres[13]. Ocorre que, para além dos custos de capital e operacionais muito elevados, o setor de transportes marítimos possui incentivos econômicos diferentes do mercado digital. Como parte crucial da logística em países de grandes dimensões, a busca pela eficiência operacional envolve o aumento contínuo da capacidade de carga das embarcações e a necessidade de integrações logísticas em várias fases da cadeia de transporte de mercadorias.
Ao realizar um interessante ensaio semelhante a este, Saito (2022)[14] argumenta que, muito antes da economia digital, o varejo já se utilizava desta estratégia, utilizando-se de private labels. Entretanto, o que a evolução da jurisprudência antitruste internacional nos mostra é que algum tipo de balancing entre os efeitos positivos e negativos de uma conduta seria necessário. O efeito de disseminar irrestritamente a configuração do self-preferencing para mercados convencionais nos parece significar aumentos de custos de transação e seu repasse ao consumidor final.
Assim como o antitruste não trabalha com “one size fits all”, ele tampouco sobrevive na ausência de uma racionalidade econômica, caso contrário, as falhas de mercado que procuramos corrigir sequer poderiam ser identificadas em primeiro plano. Ainda assim, na ausência das características de uma economia digital, o self-preferencing faria sentido como uma teoria do dano em si?
[1] Esta nova realidade inclui fortes efeitos de rede, custos de distribuição reduzidos e maior exploração dos vieses comportamentais dos consumidores, segundo WITT (2023). Isso levou o mercado das plataformas digitais a ser mais propenso aos efeitos do tipping, tornando difícil para novos entrantes superar as barreiras de ingresso de maneira rápida e eficiente. In WITT, Anne C. The Digital Markets Act: Regulating the Wild West. In ACKERMANN, Thomas; AZOULAI, Loic. (Ed.). Common Market Law Review. Kluwer Law International, 2023, Vol. 60, Issue 3, p. 629.
[2] COUTINHO, D.; KIRA, B. Ajustando as lentes: novas teorias do dano para plataformas digitais. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 9, n. 1, p. 84-85, 2021. Disponível em: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/734. Acesso em: 2 jan. 2024.
[3] RUSTICHELLI, Roberto. Self-preference. Concurrences. Disponível em: https://www.concurrences.com/en/dictionary/self-preference-111802. Acesso em: 9 jan. 2024.
[4] OCDE. Abuse of dominance in digital markets. Paris: OECD Publishing, 2020, p. 54.
[5] CRÉMER, J.; DE MONTJOYE, Y.; SCHWEITZER, H. Competition policy for the digital era. Bruxelas: European Commission Final Report, 2019, p. 7.
[6] UE. European Commission. Antitrust: Commission fines Google €2.42 billion for abusing dominance as search engine by giving illegal advantage to own comparison shopping service – Factsheet. European Commission, p. 1-4, 27 jun. 2017. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/es/MEMO_17_1785. Acesso em: 9 jan. 2024.
[7] BRASIL, Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.010483/2011-94, Voto (SEI 0644436).
[8] O Inquérito Administrativo nº 08700.001797/2022-09 (ABBT vs. Ifood), o Ato de Concentração nº 08700.000627/2020-37 (AC Nike/SBF), o Ato de Concentração nº 08700.003959/2022-35 (AC Rede D’Or/Sul América) e o Ato de Concentração nº 08700.007341/2021-63 (AC CMA CGM/Maersk).
[9] EUA. Courts of Appeals Ninth Circuit. Dreamstime.com, LLC v. Google LLC, 54 F.4th 1130 (9th Cir. 2022), JUSTIA, p. 1-26, 2022. Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/ca9/20-16472/20-16472-2022-12-06.html. Acesso em: 9 jan. 2024.
EUA. Northern District of California. Rumble, Inc. v. Google LLC et al, (N.D. Cal. 2022), JUSTIA, p. 1-8, 2022. Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/california/candce/4:2021cv00229/371759/57/. Acesso em: 9 jan. 2024.
EUA. Courts of Appeals Ninth Circuit. Epic Games, INC. V. Apple, INC., No. 21-16506 (9th Cir. 2023), JUSTIA, p. 1-91, 2023. Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/ca9/21-16506/21-16506-2023-04-24.html. Acesso em: 9 jan. 2024.
[10] EUA. Supreme Court. Syllabus. Jefferson Parish Hospital District No. 2 v. Hyde, 466 U.S. 2, JUSTIA, 1984. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/466/2/. Acesso em: 9 jan. 2024.
[11] EUA. Court of Appeals for the District of Columbia Circuit. U.S. v. Microsoft Corp., 253 F.3d 34 (D.C. Cir. 2001), JUSTIA, 2001. Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F3/253/34/576095/. Acesso em: 9 jan. 2024.
[12] EUA. Courts of Appeals Ninth Circuit. Epic Games, INC. V. Apple, INC., No. 21-16506 (9th Cir. 2023), JUSTIA, p. 1-91, 2023. Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/ca9/21-16506/21-16506-2023-04-24.html. Acesso em: 9 jan. 2024.
[13] BRASIL, Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08700.003945/2020-50.
[14] SAITO, Carolina. Self-preferencing apenas em mercados digitais? Disponível em <https://politicaspublicas.direito.usp.br/wp-content/uploads/2022/12/Self-preferencing-apenas-em-mercados-digitais_.pdf>. Acesso em 08/01/2024.