O tempo da emergência climática na pauta interamericana é agora

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) esteve no Brasil para a realização de audiência pública sobre a opinião consultiva formulada pelo Chile e pela Colômbia quanto às obrigações dos Estados na emergência climática[1].

Em momento histórico, a Corte ouviu atentamente as vozes dos povos afetados, da juventude, dos cientistas e das organizações na denúncia dos impactos do aquecimento global na América Latina e no Caribe. Nos dias 27 a 29 de maio pudemos acompanhar as oitivas na cidade de Manaus, apresentando a síntese do amicus curiae elaborado em parceria pelo EKOA: Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental e pelo Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH), ambos da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

A audiência pública deve ser interpretada no contexto da discussão global da proteção ao meio ambiente. Em outubro de 2021, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou a Resolução 48/13 reconhecendo o acesso ao ambiente saudável e sustentável como direito humano universal.

O contexto enfrentado durante a pandemia da Covid-19, levou à aprovação da resolução pela Assembleia Geral da ONU em julho de 2022. Pode-se dizer, em rápidas referências, que a interdependência entre a questão ambiental e os direitos humanos vem sendo discutida desde a primeira conferência da ONU sobre meio ambiente, realizada em Estocolmo em 1972. O reconhecimento na atualidade evidencia seu caráter estruturante, uma vez que a degradação do ambiente impacta na qualidade e no acesso aos demais direitos humanos e fundamentais, estimulando repensar o lugar da natureza no sistema de direitos.

Na apresentação da síntese do amicus curiae, destacamos a importância da ratificação do acordo de Escazú, o qual busca a implementação plena e efetiva, na América Latina e no Caribe, dos direitos de acesso à informação, participação pública e acesso à justiça. Suas diretrizes envolvem quatro eixos de atuação estratégicos para a governança democrática: a) garantir o acesso efetivo à informação e a participação; b) a proteção das pessoas defensoras de direitos humanos; c) a cooperação, e, d) o fortalecimento das capacidades. A ratificação do acordo de Escazú é importante para promover o diálogo de fontes normativas internacionais, internas e comunitárias com o objetivo de aprofundar a proteção de direitos.

Nossa manifestação tratou dos passos para medidas culturalmente adequadas para proteção da vida das pessoas defensoras de direitos humanos diante da emergência climática. Como ponto central entendemos, a partir do constitucionalismo multinível, que a garantia do território livre de ameaças e violações – é o primeiro nível de ação para a proteção de pessoas defensoras de direitos humanos. Entendemos o território como lugar de reprodução da vida, de forma que os Estados têm o dever de superar a insegurança jurídica na posse das terras. De forma que a ausência da proteção viola diretamente a dimensão existencial, ou seja, os direitos de ser e de existir das pessoas defensoras.

Para soluções em termos de adaptação e mitigação é preciso garantir às pessoas defensoras espaço e voz na tomada de decisões dos planos de enfrentamento à emergência climática. Assim, é importante elaborar o mapeamento de risco da emergência climática junto aos levantamentos dos conflitos socioambientais, compreendendo que a emergência climática potencializa as vulnerabilidades existentes e intensifica o risco de desterritorialização.

Os conflitos socioambientais devem ser admitidos enquanto categorias da análise jurídica para estabelecer mecanismos de efetiva responsabilização, aliado ao monitoramento das cadeias de valor global – processo que historicamente mantém a dependência e com forte intensificação na América Latina.

No âmbito das medidas de devida diligência, é urgente a superação da voluntariedade das ações empresariais para com o meio ambiente, além de reconhecer que os cálculos do sistema de compensação sobre a emissão de carbono serão insuficientes enquanto não considerarem como a implementação de serviços ecossistêmicos afeta os modos de vida da população originária e tradicional. Aos Estados reside o dever de estabelecer políticas transversais e multiescalares para efetiva proteção das pessoas defensoras.

Ao considerar o território como o primeiro nível de proteção, o direito à informação enfatiza o respeito ao devido processo de consulta livre, prévia e informada (CLPI) estabelecido na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A consulta é um direito autônomo de eficácia vinculante[2], realizada antes de serem tomadas decisões que possam afetar os povos.

Seu processo deve ser conduzido pelos Estados de forma livre de ameaças, com formações que propiciem a compreensão de todos os impactos diretos e indiretos que possam afetar as comunidades. Na consulta, soma-se o dever dos Estados de realizar a escuta ativa das manifestações, respeitando os protocolos comunitários de consulta[3]. E ainda, que os Estados possibilitem o financiamento das medidas de adaptação, mediante processos participativos, providos de assessoria técnica para o fortalecimento das redes de autoproteção e gestão comunitária.

Muitas das manifestações na audiência pública em Manaus tiveram como pontos em comum o reconhecimento do racismo estrutural na questão ambiental e a interseccionalidade para garantia da equidade ambiental, destacando as diferenças de acesso aos bens ambientais em termos de classe e gênero.

Os depoimentos de mulheres defensoras, por exemplo, salientaram a situação de especial vulnerabilidade diante de projetos minerários que desarticulam as economias locais e causam a perda da autonomia econômica. Com a privatização das fontes de água, elas percorrem maiores distâncias para o acesso, o que causa danos à sua saúde e de suas famílias; além da maior exposição ao risco da violência. Defender a vida das mulheres defensoras é primordial, reconhecendo os seus papéis na reprodução da vida.

Nessa mesma perspectiva se encontram os povos originários e tradicionais, cujos saberes e práticas são reconhecidamente valiosos para buscar respostas à emergência climática. Os povos indígenas, as comunidades afrodescendentes e a agricultura camponesa, mesmo diante da alta vulnerabilidade que vivenciam diante da emergência climática (o que acirra os problemas já existentes dos projetos agro-hidro-minerários nos seus territórios) demonstram que sua relação com o mundo natural é baseada no pertencimento, no afeto e na ancestralidade.

O enfrentamento da vulnerabilidade pelos povos impulsiona uma mudança epistemológica, admitindo-se a relação interdependente das sociedades humanas ao ambiente; relação essa que não está restrita à concepção da natureza como simples recurso passível de apropriação para satisfazer as necessidades humanas, mas sim, como bens naturais essenciais para a reprodução de todas as formas de vida do planeta.

As vozes de muitas pessoas ecoaram no Teatro Amazonas, informando o cuidado como a base para a proteção de todas as formas de vida e assim, mesmo diante dos desastres climáticos, as audiências públicas da Corte IDH repercutiram a esperança. Que a esperança possa se converter em diretrizes que imponham ações efetivas.

[1] A emergência climática já foi considerada pelo dicionário Oxford a expressão do ano em 2019. Surgida a partir das divulgações científicas acerca dos riscos crescentes dos efeitos das mudanças antrópicas no ambiente, o tema despertou manifestações da juventude, como as conhecidas greves pelo clima. A diferença reside no caráter de urgência que a expressão imprime, enfatizando as ações urgentes para reduzir as emissões dos gases causadores do efeito estufa.

[2] Reforçamos o entendimento que o Acordo de Escazú é relevante para reforçar a participação popular, porém, diferencia-se da consulta. Para povos originários e tradicionais, o art. 6º da OIT 169 consagra a autodeterminação e demanda os Estados o dever de realizar a CLPI e conferir existência, validade e eficácia aos Protocolos Comunitários de Consulta

[3] Os protocolos autônomos ou comunitários são documentos em que os povos descrevem como e em quais condições deve ser exercida a consulta. No site do Observatório dos Protocolos Comunitários de Consulta, projeto parceiro do Ekoa, é possível consultar alguns desses documentos: https://observatorio.direitosocioambiental.org/.