A legitimidade coletiva do Ministério Público para a promoção de direitos individuais homogêneos foi definida nos temas 471 e 850 do Supremo Tribunal Federal (STF). Contudo, ela enfrenta agora novo desafio no mesmo STF: seu alcance e extensão – desta vez conectada à fase coletiva de liquidação e execução no tema 1.270, suspenso por pedido de vistas do ministro Flávio Dino em maio passado.
Profeticamente, Antonio Gidi[1] já denunciara, há bem mais de uma década, a perversidade de se atacar a legitimidade do Ministério Público para a proteção coletiva de direitos individuais homogêneos (exatamente tema de debate no Tema 1.270) e a desonestidade intelectual de negar a legitimidade coletiva da Defensoria Pública.
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É imprescindível, para prosseguir, dizer o que não está em discussão no tema 1.270: não se discute aqui nem casos para os quais a atividade individual do beneficiário é imprescindível para a liquidação e a execução de sentença condenatória coletiva genérica – quando ele (o beneficiário) deverá atuar por intermédio da representação de advogado ou defensor público, se vulnerável econômico; muito menos se discute a legitimidade para a execução individual por intermédio de instituições atuando como “substituto processual” em legitimidade extraordinária.
Na verdade, o tema 1.270 é sobre a extensão da legitimação coletiva relacionada aos direitos individuais homogêneos, mas em execução coletiva – e não individual, repita-se.
Portanto, somente se pode compreender adequadamente o tema 1.270 quando se separam as hipóteses de execução individual e de execução coletiva decorrentes da mesma sentença condenatória envolvendo direitos individuais homogêneos – execuções essas que podem até mesmo conviver por expressa dicção legal (Código de Defesa do Consumidor – CDC, art. 97 e 98).
Nessa senda, em parecer apresentado no seio do tema 1.270, Camilo Zufelato[2] expõe que a imposição da execução individual viola as regra do CDC e as garantias constitucionais do devido processo coletivo, como ele afirma, logo “na fase mais relevante da tutela de direitos individuais homogêneo, que é a executiva”.
Assim sendo, enquanto houver confusão sobre o que é debatido, abre-se caminho à oposição total de votos como está ocorrendo até aqui entre os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes; quando, em verdade, os dois votos tratam de casos circunstancialmente distintos – e, por isso, “todo cuidado é pouco”.
Na verdade, para garantir integridade, coerência e nomofilaquia (ou “nomofilaxia”) à jurisprudência do STF, é preciso convir que:
(1) “o acessório segue o principal” (“Accessorium Sequitur Principale”) e, por isso, a legitimação à ação coletiva na fase de conhecimento também alcançará a execução igualmente coletiva – em decorrência lógica da confirmação da legitimidade ministerial nos temas n. 471[3] e n. 850[4] do STF. Afinal, como afirmam Arenhart, Zaneti Jr. e Vitorelli[5]: “(…) se existe interesse em se obter uma decisão, é evidente que também existe interesse em implementá-la”;
(2) por outro lado, há casos de necessária atuação do indivíduo beneficiado, quando então será imprescindível a atuação da parte por seu advogado ou defensor público, se vulnerável econômico (caso mencionado, em “obiter dictum”, na ADI n. 3943).
Nesse cenário, (a) reconhecer a extensão da legitimidade coletiva à fase executiva, nos casos de possibilidade de econômica liquidação/execução coletiva (CDC, art. 98[6]), e (b) distinguir essas situações daquelas de impossibilidade ou concorrência com a execução individual (CDC, art. 97[7]), são essenciais à integridade e harmonia jurisprudencial no STF, naquilo que Sérgio Chiarloni denomina de “Funzione Nomofilattica”[8], em medida também determinada pelo Código de Processo Civil (CPC art. 926[9]).
Portanto, a jurisprudência do STF não terá integridade, coerência, harmonia e nomofilaquia se não separar as hipóteses de execução coletiva e execução individual decorrentes da mesma sentença coletiva envolvendo direitos individuais homogêneos.
[1] GIDI, Antonio. Rumo a um Código de Processo Coletivo: a Codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 413.
[2] ZUFELATO, Parecer. Autos do RExt n. 1.449.302 (Tema n. 1270), p. 14 do parecer.
[3] Tese firmada: “Com fundamento no art. 127 da Constituição Federal, o Ministério Público está legitimado a promover a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, mesmo de natureza disponível, quando a lesão a tais direitos, visualizada em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcender a esfera de interesses puramente particulares, passando a comprometer relevantes interesses sociais.”
[4] Tese firmada: “O Ministério Público tem legitimidade para a propositura de ação civil pública em defesa de direitos sociais relacionados ao FGTS”.
[5] ARENHART, Sérgio Cruz. ZANETI JR., Hermes. VITORELLI, Edilson. Liquidação e execução coletiva de obrigação de pagar quantia a indivíduos identificados: o Tema 1.270 da Repercussão Geral. Revista de Processo. São Paulo, v. 357, p. 271-295, Nov. 2024.
[6] CDC, “Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções.”
[7] CDC, “Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.”
[8] CHIARLONI, Sergio. Fuzione nomofilattica e valore del precedente. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim. Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 225-243.
[9] CPC, “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.”