Diferentemente das leis, cuja legitimidade provém da representação democrática presente na composição do órgão que as edita e nas deliberações das quais resultam, a legitimidade das decisões do Poder Judiciário decorre de seu conteúdo e de sua autoridade, isto é, da qualidade de suas razões e do respeito aos seus mandamentos.
Esse respeito deve emanar de todos, inclusive – e especialmente – dos próprios órgãos prolatores de decisões. Um Poder Judiciário que não respeita suas próprias decisões perde o respeito. E um Poder que perde o respeito, também perde sua legitimidade, tão questionada ultimamente – na maior parte das vezes pelas razões erradas, do modo errado e no momento errado.
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O Supremo Tribunal Federal (STF) tem historicamente respeitado a sua própria jurisprudência, protegido a confiança de quem agiu com base nela e a aplicado de maneira uniforme a todos que se encontram na mesma situação ao apreciar a modulação dos efeitos de suas decisões. Assim se sucede no caso da tributação do adicional de férias. Como a Corte tinha inicialmente decidido que a competência para tratar do tema era do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao posteriormente mudar de entendimento e decidir de maneira diversa daquele Tribunal, entendeu por bem respeitar suas próprias decisões anteriores e proteger a confiança que todos haviam depositado nelas.
Assim foi o voto do ministro Luís Roberto Barroso: “Com o reconhecimento da repercussão geral e o julgamento do mérito deste recurso há uma alteração no entendimento dominante, tanto no âmbito do STF, quanto em relação ao que decidiu o STJ em recurso repetitivo”. Na ocasião, a Fazenda Nacional saiu vitoriosa, já que a decisão do STJ lhe era favorável.
O mesmo ocorreu quando o STF decidiu pela inconstitucionalidade da incidência do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre os valores atinentes à taxa Selic na repetição de indébito tributário. Como a Corte tinha atribuído ao STJ a competência para tratar da matéria, ao alterar seu posicionamento e finalmente decidir de maneira diferente daquele Tribunal, também preservou a eficácia de suas próprias decisões anteriores e protegeu a confiança que todos haviam depositado nelas.
Segundo o ministro Dias Toffoli, “não há dúvida de que esse precedente específico, proferido há quase nove anos, estabeleceu legítima confiança, em prol da Fazenda, de que as tributações em questão eram válidas. Note-se também que tal precedente, por estar submetido à sistemática dos recursos repetitivos, era de observância obrigatória pelas instâncias inferiores”. Igualmente nesse caso a Fazenda Nacional foi bem-sucedida, já que a decisão do STJ tinha sido proferida em seu favor.
Em outro caso similar, o STF decidiu a respeito da exclusão do ICMS na base de cálculo das contribuições sobre a receita. Embora não tivesse inicialmente atribuído competência ao STJ para decidir o tema, a Corte entendeu que a decisão proferida por esse tribunal tinha servido de orientação para a Fazenda Nacional.
Ao tratar sobre a ação, a ministra Cármen Lúcia afirmou que “ao afastar o reconhecimento da constitucionalidade da matéria, relegou essa interpretação ao Superior Tribunal de Justiça, que, no exercício de sua competência para uniformizar a interpretação da legislação federal, adotava posicionamento diverso do que prevaleceu neste Supremo Tribunal Federal”. Novamente, triunfou a Fazenda Nacional, já que a decisão do STJ tinha sido proferida em seu benefício.
Nesta semana, o STF vai julgar, em repercussão geral, uma questão rigorosamente idêntica, nos aspectos essenciais, àquelas julgadas pelas decisões acima referidas. Entre 2007 e 2011, as suas duas Turmas decidiram, por unanimidade, que era do STJ a competência para julgar o alcance de decisões transitadas em julgado diante de decisões gerais posteriores do STF. Em 2011, o STJ decidiu, em recurso repetitivo de observância obrigatória, em favor dos contribuintes, que as decisões gerais posteriores não produziam efeitos automáticos em relação às decisões individuais anteriores transitadas em julgado.
Em 2016, contudo, o STF mudou sua orientação e decidiu julgar a questão, tendo assim se pronunciado o ministro Barroso: “Não obstante ter inicialmente consignado que a controvérsia teria caráter infraconstitucional, reconheci a plausibilidade das questões constitucionais suscitadas pela recorrente e decidi submetê-las a um debate mais amplo”. Em fevereiro deste ano, o STF decidiu de maneira contrária àquela que havia decidido o STJ.
Considerando que este caso é rigorosamente igual, nos seus aspectos essenciais, àqueles já julgados, adquire extrema importância a indagação que deu título a este artigo. O STF respeita as suas próprias decisões? Cinco ministros já se manifestaram em favor do respeito às próprias decisões do tribunal.
A resposta que o Plenário do STF dará a essa pergunta não é apenas essencial para proteger a confiança daqueles que confiaram nas suas decisões e para demonstrar que o tribunal não decide de um jeito para a Fazenda e de outro para os contribuintes. Ela é igualmente crucial para preservar a autoridade de suas decisões e a própria legitimidade de sua atuação, tão imprescindíveis para o País e para o seu desenvolvimento humano, econômico e social.
* O autor atua como representante de uma das partes no processo mencionado no texto