O STJ e o gestor público influencer

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Durante muito tempo, prefeitos e governadores se notabilizaram por fixar placas em obras públicas com seus nomes em destaque, como se fossem patronos pessoais de escolas, rodovias e hospitais custeados pelo erário. A Constituição de 1988 reagiu a esse vício e, no artigo 37, § 1º, estabeleceu regra clara: a publicidade dos atos administrativos deve ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, sendo vedada qualquer forma de promoção pessoal de autoridades ou servidores.

Ocorre que, com a revolução digital, a velha prática apenas trocou de vitrine. Se antes a autopromoção se materializava em placas e outdoors, hoje ela se espalha em posts, stories e reels. O perfil pessoal do gestor público se transformou em palco de propaganda institucional, muitas vezes turbinada por recursos públicos. Trata-se do fenômeno do “gestor público influencer”, que transforma curtidas e seguidores em capital político-eleitoral, construído com dinheiro de todos.

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Foi nesse contexto que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em fevereiro deste ano, autorizou o prosseguimento da ação de improbidade administrativa contra o ex-prefeito de São Paulo João Doria. O processo apura o suposto uso de verba pública para divulgar o programa Asfalto Novo em seus perfis pessoais, configurando indício de promoção pessoal ilícita.

Segundo o tribunal, o valor gasto em publicidade institucional chegou a superar o montante aplicado na própria execução do asfaltamento, revelando desproporção evidente. A decisão reafirma que a vedação constitucional não perdeu atualidade, mas precisa ser interpretada à luz das novas formas de comunicação política.

Outros casos seguem a mesma linha: prefeitos e prefeitas de Várzea Grande (MT), Fundão (ES) e Cuiabá (MT) já foram denunciados por condutas semelhantes. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul condenou o ex-prefeito de Bandeirantes por autopromoção em redes sociais, aplicando multa e suspensão de direitos políticos. O problema, portanto, é endêmico.

O núcleo da ilicitude é idêntico, seja no outdoor da década de 1990 ou no Instagram de 2025. Em ambos os casos, há um aporte de patrimônio público em um ativo pessoal.

Usar verba de publicidade institucional para alimentar perfis privados não difere, em essência, de utilizar carro oficial em passeios particulares ou de empregar servidores para serviços domésticos. A diferença é apenas simbólica: em vez de tijolos, o gestor público transporta audiência e engajamento do patrimônio coletivo para sua conta pessoal.

O STJ já firmou que a configuração do ato de improbidade por violação à impessoalidade exige apenas dolo genérico, a vontade consciente de praticar a conduta (AgRg no AREsp 634.908/MG). Nesse mesmo sentido, o TJRO reconheceu a ilicitude da divulgação de feitos da gestão em perfis particulares (Apelação Cível 7002143-70.2022.8.22.0004), e o TJBA determinou a remoção de postagens em rede social de prefeita por promoção pessoal (AI 8030425-53.2023.8.05.0000). O TJMG, por sua vez, assentou que a exaltação de prefeito em publicações no Facebook oficial da prefeitura vulnera os princípios administrativos (AC 5000327-96.2020.8.13.0331).

É essencial dissipar um equívoco: o controle exercido pelo Judiciário não restringe a liberdade de expressão do agente político. Prefeitos e governadores continuam livres para opinar, criticar e se posicionar em suas redes pessoais.

O que se veda é a utilização de dinheiro público para potencializar essas manifestações, personalizando-as em benefício eleitoral. O direito de expressão é individual; o dever de impessoalidade é institucional. Não há colisão, mas distinção de planos.

Nesse sentido, a comunicação oficial deve ocorrer por canais institucionais, jamais por perfis pessoais. A mistura entre público e privado, seja no uso de imagens oficiais em contas particulares, seja na personalização de páginas institucionais com símbolos do gestor, rompe a linha constitucional que separa gestão pública de autopromoção individual.

Mais grave ainda é quando servidores pagos pelo erário produzem e gerenciam conteúdo para perfis privados de autoridades. Nesse caso, o desvio de finalidade é absoluto, pois há mobilização de recursos humanos e financeiros em benefício de um só indivíduo.

Ao reafirmar sua jurisprudência, o STJ cumpre papel central na atualização hermenêutica da norma federal. Assim como a Justiça Eleitoral precisou enfrentar a propagação de fake news para proteger a integridade das eleições, agora a Justiça Comum se debruça sobre o uso ilícito das redes sociais por gestores públicos.

O combate ao “gestor público influencer” é medida de preservação democrática. Sem esse controle, recursos estatais podem ser transformados em curtidas, seguidores e influência digital privada, desequilibrando a disputa eleitoral e perpetuando práticas oligárquicas.

A decisão do STJ é também um chamado à atuação coordenada de Ministérios Públicos e Tribunais de Contas. A lei já existe, a jurisprudência já se consolidou. Falta garantir a aplicação efetiva e isonômica das sanções.

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O chamado “recreio digital” com dinheiro público precisa acabar. A era das placas de obras foi sucedida pela era dos posts impulsionados; em ambas, a essência da ilicitude é a mesma: usar patrimônio coletivo como trampolim político pessoal.

O STJ mostrou que o artigo 37 da Constituição não é peça de museu. Ao contrário, revela-se mais atual do que nunca diante dos desafios da comunicação digital. A impessoalidade e a moralidade administrativa permanecem como princípios estruturantes, capazes de atravessar épocas e plataformas.

Seja em concreto ou em pixels, a mensagem é clara: a gestão pública não é palco de autopromoção. Ao consolidar o controle sobre o gestor público influencer, a Justiça brasileira reforça que o patrimônio do povo não pode ser convertido em capital político privado.