Na semana iniciada com a comemoração dos 37 anos da Constituição Federal de 1988, alcançados no dia 5 de outubro, domingo passado, dois acontecimentos chamam a atenção sob o prisma constitucional: a divulgação da criação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do Centro de Estudos Constitucionais (CESTF), vinculado à Presidência da Corte; e o falecimento do grande professor e jurista alemão Peter Häberle, no dia 6 de outubro. Uma palavra une os dois fatos: a doutrina.
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O CESTF foi instituído pela Resolução 890, de 29 de setembro de 2025, que apresenta, nos seus consideranda, “a importância de estabelecer no âmbito do Supremo Tribunal Federal um centro de estudos que promova a pesquisa acadêmica acerca de temas relevantes para a Justiça brasileira, à semelhança de centros existentes em diversos países, como Espanha, México, Peru e República Dominicana”; “a necessidade de aproximação da atividade jurisdicional da análise acadêmica desenvolvida pelo sistema de pós-graduação em Direito, por meio das Instituições de Ensino Superior do país”; e “a conveniência da criação de um centro de referência, que examine academicamente, com o devido foco, a produção normativa brasileira, bem assim os diversos campos abrangidos dentro da legalidade constitucional, com o intuito de subsidiar tanto o desenvolvimento de estudos e pesquisas, quanto a prática jurisdicional”, além de ressaltar “que a instituição de um centro de estudos constitucionais está alinhada às diretrizes institucionais de incentivo à inovação, à internacionalização e ao fortalecimento da conexão entre direito, conhecimento, experiência e cidadania”.
A implementação de iniciativas tendentes a reforçar ou aprimorar a conexão do STF com a academia, a doutrina e a internacionalização tem relevância extrema, na medida em que é uma ferramenta que proporciona a circulação de ideias, teorias, jurisprudências e legislações interpretadas, com aptidão para influenciar no maior ou menor grau da qualidade argumentativa das decisões prolatadas no exercício da jurisdição constitucional, inclusive em uma perspectiva cosmopolita[1].
O contato com a academia por meio da interação nacional e estrangeira possui peso na produção decisória do STF. A permeabilidade da Corte aos influxos doutrinários certamente não condiciona, mas sobremaneira impacta a construção das fundamentações e da palavra final sobre problemas jurídicos, razão pela qual a criação do CESTF indica que a Corte assenhora-se da construção do diálogo inovador e referencial com a academia, sem se descurar da centralidade axiológica da cidadania à luz da sua complexidade em uma sociedade dinâmica.
Em foco o tema dos formantes – inicialmente denominados componentes, por Rodolfo Saccco, em 1964, e posteriormente renomeado de formantes, a partir de 1979[2]. Trata-se de uma das mais valiosas contribuições da doutrina italiana para o Direito Comparado[3]. Os formantes correspondem às variadas influências, jurídicas ou não, que coexistem e conformam-se tanto entre si quanto no delineamento de um sistema ou de um ordenamento[4].
Reconhecendo-se a existência de suas variadas espécies, podem ser mencionados, a título de exemplo, os formantes legal ou legislativo, doutrinário e jurisprudencial[5]. Nessa linha, subdividindo-se em categorias os principais formantes dos ordenamentos contemporâneos, quais sejam, legal, jurisprudencial e doutrinário, os dois primeiros seriam ativos ou dinâmicos, na medida em que, respeitadas as variações existentes entre cada sistema jurídico, são idôneos a produzir direito cogente, ao passo que o último, relativo à doutrina, seria passivo[6].
O formante legislativo abrange não apenas a lei ou ato normativo em si, mas também a autoridade criadora, como o Poder Legislativo ou o Executivo do qual emane, por exemplo, uma medida provisória. O mesmo pode ser dito do jurisprudencial: abarca não somente a decisão, mas também o órgão decisório, como, no Brasil, o STF. Quanto à doutrina, é inegável que além de uma publicação com enunciados teóricos e princípios, é igualmente relevante o pronunciamento ou a opinião fundamentada elaborada, por exemplo, em sede de uma entrevista televisiva, ainda que manifestada oralmente.
A interdisciplinaridade tem conferido mais abrangência aos formantes, que passam a integrar outros fatores, ao considerar também os formantes meta-legais, como os contextos políticos, os contornos econômicos, a pluralidade cultural e a coesão social, a fim de permitir um maior aprofundamento na atmosfera em que o direito é gerado, desenvolvido e aplicado[7].
Lucio Pegoraro, professor italiano que já publicou, como convidado, artigo na Suprema – Revista de Estudos Constitucionais[8], bem assevera:
En la construcción del derecho, la doctrina contribuye a la alimentación, por decirlo de alguna forma, de los formantes dinámicos, pero hoy en día, en el mundo occidental, no produce derecho directamente y con autoridad. Sin embargo, en el pasado no siempre fue así, ni ahora es de esta manera en todas partes. Por tanto, se debe tener mucho cuidado en distinguir los formantes activos o dinámicos de los otros, y apartarse de la visión del positivismo legislativo — bardo de “unicidad de la regla”— a favor de una visión (incluso positivista) del derecho que asigna a cada uno su propio papel, de acuerdo con los tiempos y lugares[9].
A variabilidade da valoração de um formante depende de cada ordenamento e sistema jurídico, inclusive em função do tempo. A dinâmica de força é, por isso, mutável, à luz da porosidade ou permeabilidade do direito”[10]. No Brasil, por exemplo, assistiu-se a uma certa diminuição da reverência à doutrina nacional[11] e ao aumento da autoridade jurisprudencial (não só da constitucional, como vem ocorrendo em outros países[12]). Não raramente, a autoridade jurisprudencial se refere a entendimentos de intelectuais estrangeiros e a decisões de outros Estados, inclusive como forma de fortalecer a fundamentação, valendo-se também da authority[13].
Sobre o uso da doutrina pelo STF, merece destaque a publicação na qual André Ramos Tavares e Renato Gugliani Herani apresentam o método aplicado, que se valeu da estatística e da busca por decisões em um período determinado, a fim de identificar as contribuições doutrinárias nacionais e estrangeiras, os tipos de citação, os autores citados e os membros da Corte que citaram, chegando também a resultados quanto às classes processuais, ao tipo de provimento no qual houve a referência, às obras citadas, ao país de origem e à formação[14].
Na mesma obra, dessa vez não mais em coautoria, Tavares analisa os dados para apresentar uma perspectiva sobre a doutrina estudada a partir das decisões do STF e sobre a sua função criativa de normas jurisprudenciais, mediante influências implícita e explícita[15].
De grande relevo o artigo de autoria do ministro Gilmar Mendes e André Rufino do Vale, que versou sobre a influência de Peter Häberle na Corte. Foi constatada a forte presença do pensamento do doutrinador seja na elaboração legislativa que institucionalizou o amicus curiae e as audiências públicas, seja na jurisprudência que utiliza o argumento comparativo[16]. Os autores concluem que a disseminação do pensamento do jurista alemão ocorre de forma decisiva para formar um Direito Constitucional comum latino-americano na região.
Inegável, pois, a contribuição doutrinária de Häberle no que concerne ao diálogo com outros ordenamentos e sistemas, de forma a proporcionar compreensões, identificações de similaridades, distinções, etiologias e migrações; léxico próprio da incidência do Direito Comparado no julgamento de casos pelo STF, ao se valer do argumento comparativo nas fundamentações.
A importante presença da influência teórica de Peter Häberle no Brasil deflui da constatação acadêmica de achados relevantes e, malgrado a sua morte, aos 91 anos, ainda há campo para prospecção de consequências futuras no que concerne ao legado da sua doutrina humanista, notadamente quanto ao aprofundamento da proteção dos direitos fundamentais com parâmetros comuns.
Häberle propugnava por um “conceito mais amplo de hermenêutica constitucional”[17] e pela prevalência da dignidade da pessoa humana em um Estado Constitucional Cooperativo, assim conceituado pelo autor:
“Estado Constitucional Cooperativo” é o Estado que justamente encontra a sua identidade também no Direito Internacional, no entrelaçamento das relações internacionais e supranacionais, na percepção da cooperação e responsabilidade internacional, assim como no campo da solidariedade. Ele corresponde, com isso, à necessidade internacional de políticas de paz[18].
Desse modo, em total congruência com o que preceituava o jurista alemão, o CESTF, ao buscar realizar “pesquisa acadêmica acerca de temas relevantes para a Justiça brasileira” com foco na diretriz da internacionalização, demonstra a relevância de uma agenda de pesquisa permanente a incluir o uso do método comparativo na jurisprudência do STF, à luz do pensamento de Peter Häberle quanto ao quinto método da interpretação constitucional[19].
Como fatores que influenciam e proporcionam a circulação de doutrinas, inclusive entre diversas Cortes nacionais e internacionais, estão a semelhança entre os problemas jurídicos enfrentados pelos tribunais, a facilidade de comunicação e de intercâmbio de notícias, além da formação estrangeira dos profissionais[20].
Saliento, também, que o Brasil possui, sinteticamente: cláusulas de abertura constitucional ao Direito Internacional Público; ausência de norma impeditiva de citação de doutrina, decisão ou norma estrangeiras nos julgados; plena liberdade de manejo das técnicas interpretativas pela magistratura constitucional; existência de votos separados de cada julgador ou julgadora, a formar a maioria ou minoria decisória ao dirimir um problema posto em um caso sob apreciação do STF, e coexistência de decisões monocráticas; aproximação e forte influência cultural desde (e devido a) o passado colonial que delineou a formação jurídica do país; e a abertura internacional do STF.
No nosso país, então, a doutrina exerce uma influência indireta em decisões judiciais[21]. Sobre o tema, partindo da observação do então novo contexto educacional inglês, Markesinis e Fedtke prospectam uma formação mais aberta e permeada por intercâmbios, a engendrar uma nova geração de juízas (es), mais cientes das possibilidades de soluções de problemas jurídicos com base em uma visão não somente local[22]. Nessa linha, há uma variedade de origens dos influxos que incidem sobre os ministros. Uma delas é a formação educacional.
No Brasil, já há esse reflexo, como deriva do histórico acadêmico-profissional de cada ministro, advindo não só da formação educacional e da experiência profissional anterior à posse no STF, mas igualmente do contato e da troca de experiências entre membros da própria magistratura constitucional, por exemplo, ao se noticiar a solução de um caso difícil, ou por meio de seminários ou eventos, que também constituem objetivos do CESTF, nos termos do art. 2º, II, da Resolução 890, de 29 de setembro de 2025.
Na semana de celebração da Constituição Federal de 1988, que traz, no seu Capítulo III, seções destinadas à Educação e à Cultura como uma verdadeira carta de intenções a ser concretizada por todos os Poderes, lembremo-nos da nossa cultura jurídica. Esta envolve o comportamento de julgadoras (es), que revelam um criptotipo a anunciar uma certa vinculação, por vezes não dita, decorrente da história, da formação, da circulação, dos encontros, da academia e da experiência profissional, enfim, da cultura, da incidência do formante cultural, que permeia as decisões de forma críptica.
Recordemo-nos, essencialmente, da nossa Constituição aniversariante tal como entendida pela doutrina de Peter Häberle, ou seja, não só texto jurídico, mas expressão de um estágio evolutivo cultural, um meio de autorrepresentação de um povo e, sobretudo, fundamento de suas esperanças[23].
[1] DIXON, Rosalind. Cómo comparar constitucionalmente. Latin American Law Review, n. 3, p. 7-8, 2019.
[2] SACCO, Rodolfo; ROSSI, Piercarlo. Introduzione al Diritto Comparato. Milanofiori: Wolters Kluwer, 2015. p. 57.
[3] GRANDE, Elisabetta. Development of Comparative Law in Italy. In: REIMANN, Mathias; ZIMMERNANN, Reinhard. The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University Press, 2019. p. 93-94.
[4] Nesse sentido, cf. GAMBARO, Antonio; SACCO, Rodolfo. Sistemi Giuridici Comparati. Milano: Utet Giuridica, 2014. p. 4.
[5] Michele Carducci refere-se ao que denomina os três “formantes” mundanos de origem jurídica, que seriam a legis-latio, a iuris-dictio e a interpretatio. E segue afirmando que “(…) o constitucionalismo marca o percurso histórico do Ocidente na direção da progressiva unificação destas ideias do direito compreendido como ‘re-legitimação’ terrena dos ‘formantes’”. Vide CARDUCCI, Michele. Política, democracia, decisionismo: justiça constitucional e constitucionalismo. Consensus ou Petitum? In: ROMBOLI, Roberto; ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de (org.). Justiça constitucional e tutela jurisdicional dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2015. p. 202.
[6] PEGORARO; RINELLA, op. cit., 2017. PEGORARO, Lucio; RINELLA, Angelo. Sistemi costituzionali comparati. Torino: G. Giappichelli Editore, 2017. p. 12.
[7] GRANDE, op. cit., 2019. p. 94.
[8] PEGORARO, Lucio. Hacia nuevas clasificaciones de las formas de Estado. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, Distrito Federal, Brasil, v. 3, n. 1, p. 21–86, 2023. DOI: 10.53798/suprema.2023.v3.n1.a238. Disponível em: https://suprema.stf.jus.br/index.php/suprema/article/view/238. Acesso em: 9 out. 2025.
[9] PEGORARO, Lucio. La doctrina en la jurisprudencia de los Tribunales Constitucionales (y la falta de doctrina sobre la doctrina). In: PEGORARO, Lucio; MEJÍA, Giovanni A. Figueroa. Profesores y jueces: influjos de la doctrina en la jurisprudencia de Iberoamérica. México: Centro de Estudios Constitucionales de la Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2016. p. 10.
[10] DELMAS-MARTY, Mireille. Le pluralism ordonné. Paris: Éditions du Seuil, 2006. p. 39.
[11] Segundo Michele Carducci: “O ‘formante’ doutrinário torna-se ‘cada vez mais passivo’: deve legitimar, mas não pode ‘alterar’, por isso deve ‘se dar’ um método”. CARDUCCI, op. cit., 2015. p. 205.
[12] PEGORARO, Lucio. L’argomento comparatistico nella giurisprudenza della Corte costituzionale italiana. In: FERRARI, Giuseppe Franco; GAMBARO, Antonio (org.). Corti nazionali e comparazione giuridica. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006. p. 496.
[13] FERRARI, Giuseppe Franco; GAMBARO, Antonio. Le Corti nazionali ed il diritto comparato: una premessa. In: FERRARI, Giuseppe Franco; GAMBARO, Antonio (org.). Corti nazionali e comparazione giuridica. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2006. p. IX.
[14] TAVARES, André Ramos; HERANI, Renato Gugliani. Apresentação do método aplicado: as citações doutrinárias em números. In: LOPES, Teresa M. G. da Cunha; PEGORARO, Lucio (coord.). A contribuição da doutrina na jurisdição constitucional portuguesa e brasileira. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2014. p. 31-66.
[15] TAVARES, André Ramos. A contribuição da doutrina na jurisprudência constitucional brasileira: análise de dados. In: LOPES, Teresa M. G. da Cunha; PEGORARO, Lucio (coord.). A contribuição da doutrina na jurisdição constitucional portuguesa e brasileira. Lisboa: Universidqde Nova de Lisboa, 2014. p. 67-104.
[16] MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. A influência de Peter Häberle no STF. Revista Consultor Jurídico, Brasília, 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 9 out. 2025.
[17] HÄRBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição par a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabirs Editor, 1997. p. 14
[18] HÄRBELE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 4.
[19] HÄRBELE, Peter. El Estado constitucional. Ciudad de México: Universidad Autónoma de México, 2003. p. 162-165.
[20] MARTÍN-RETORTILLO, Lorenzo. La Europa de los derechos humanos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1998. p. 252.
[21] PEGORARO, Lucio; MEJÍA, Giovanni A. Figueroa. Presentación de la investigación en los diversos niveles de estudio: el mundial, el iberoamericano y em mexicano. In: MEJÍA, Giovanni A. Figueroa. Influencia de la doctrina en las decisiones de la Suprema Corte de Justicia mexicana. Ciudad de México: Editorial Porrúa, 2017, p. 6.
[22] MARKESINIS, Basil; FEDTKE, Jörg. Judicial recourse to foreign law: a new source of inspiration? London: UCL Press, 2006. p. 211.
[23] HÄBERLE, Peter. Costituzione e identità culturale: tra Europa e Stati Nazionali. Traduzione di Igino Schraffi. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2006. p. 11.