O Conselho Nacional Fazendário (Confaz), com aprovação dos 26 estados e do Distrito Federal, de forma açodada, editou o Convênio ICMS 174 em 31 de outubro de 2023, que regulamentou a remessa interestadual de bens e mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade.
Menos de um mês após a sua edição, o mesmo Confaz, por meio do Ato Declaratório 44 de 17 de novembro de 2023 do Diretor da Secretaria-Executiva, indo de encontro ao que tinha decidido anteriormente, publicou a rejeição do referido ato normativo, em razão da não ratificação pelo Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro[1].
Isso é mais um capítulo da celeuma envolvendo a incidência do ICMS nessas operações, bem como seus reflexos na apropriação dos créditos do imposto.
É importante lembrar que o STF firmou entendimento (em verdade, reafirmou) na ADI 49, que o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ficando também reconhecido o direito dos contribuintes em transferirem créditos nessas operações.
Além disso, o Supremo modulou os efeitos da decisão para o início de 2024, mesmo diante da existência de entendimento jurisprudencial consolidado sobre a matéria (Súmula 166 do STJ[2]), permitindo que “os Estados disciplinassem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular”.
Por mais que a ementa da decisão do STF tenha consignado que era dever dos estados disciplinar a transferência dos créditos, o vácuo normativo deve ser preenchido com a edição de Lei Complementar pelo Congresso Nacional.
Isso pois, cabe à lei complementar, descrita no art. 146 do Constituição Federal, veicular “normas gerais em matéria de legislação tributária”. Em relação ao ICMS existe dispositivo constitucional expresso pela necessidade de edição de lei complementar para disciplinar o “regime de compensação do imposto”, nos termos da alínea ‘c’, do incido XII, do § 2º, do art. 155, da Constituição Federal.
Fato é que os representantes dos estados no Senado já encaminharam o PLP 332/2018, aprovado por essa casa legislativa e enviado para a Câmara dos Deputados para revisão (PLP 116/2023), cujo objetivo é alterar a Lei Complementar 87/1996 para tratar da incidência e transferência de créditos nos casos de transferência de mercadoria entre estabelecimentos do mesmo contribuinte[3].
Dito isso, a tentativa do Confaz, frustrada pelo próprio órgão em menos de um mês, foi novamente[4] além do que deveria. Aliás, além do que poderia. O Convênio de ICMS não é veículo normativo apto para regulamentar a matéria aqui debatida.
Não fosse a açodada regulamentação do Confaz, existem ainda pontos divergentes entre a solução em debate no Congresso Nacional e aquela proposta pelos estados no Convênio, ora rejeitado.
De um lado, o projeto de lei complementar prevê duas alternativas para a transferência do crédito. A primeira é a manutenção do crédito, independente do oferecimento à tributação da operação. A segunda é a transferência do crédito, por opção do contribuinte, equiparando a transferência a operação sujeita a ocorrência do fato gerador do imposto.
No caso do Convênio ICMS 174/2023 existia a previsão para que o ICMS a ser transferido seja lançado a débito na escrituração do estabelecimento remetente, o que se equipara a uma operação com ocorrência do fato gerador (Cláusula Segunda, § 1º, I).
A alternativa proposta pelo projeto de lei complementar parece mais adequada a determinação do STF para disciplinar a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, considerando, que essa não é uma operação sujeita a incidência do imposto.
Em relação a base de cálculo, o projeto de lei complementar estabelece que será o “valor atribuído a operação”. Já o referido Convênio rejeitado previa que a base de cálculo da transferência deverá ser o valor a correspondente à entrada mais recente da mercadoria ou métodos baseados em apropriação dos custos”.
Nesse ponto, certamente o projeto de lei complementar precisa avançar para garantir maior segurança jurídica ao conceito indeterminado trazido do “valor atribuído a operação”. Já os estados, por meio de Convênio, não podem regulamentar algo que não está a seu alcance.
Nota-se, portanto, que o Confaz passou o carro na frente dos bois, posto que é de se aguardar a disciplina da matéria por meio de lei complementar, para que dentro do seu alcance, e ainda, respeitando as diretrizes do Supremo Tribunal Federal, o referido órgão possa exercer sua função normativa regulamentadora.
E mesmo que a intenção do Convênio ICMS 174/2023 fosse garantir alguma segurança jurídica ao contribuinte, face a lacuna de lei complementar, os fatos ocorridos em menos de um mês, atinentes a edição de um Convênio, no qual o Confaz extrapolou sua função normativa, e, posteriormente, sua rejeição, apenas contribui para a atual percepção do nosso sistema como sendo um “manicômio tributário”, caótico, volátil e imprevisível.
[1] A rejeição dos Convênios editados pelo CONFAZ está prevista somente na hipótese de não ratificação, expressa ou tácita, pelo Poder Executivo de TODOS os Estados e do Distrito Federal, e, ainda, restrito as hipóteses de e concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais (§ 2º do art. 4º e art. 5º da LC 24/1975,e, inciso X, do art. 5° e pelo parágrafo único do art. 37 do Regimento do CONFAZ – Convênio ICMS 133/97)
Dito isso, a própria rejeição do convênio pelo Diretor da Secretaria-Executiva do CONFAZ, após sua não ratificação pelo Estado do Rio de Janeiro, esta ao arrepio da legislação de regência.
[2] SÚMULA N. 166. Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. DJ 23.08.1996
[3] Texto do PLP
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º O art. 12 da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir), passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 12. ……………………………………………………………………………………..
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte;
…………………………………………………………………………………………………..
4º Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas hipóteses de transferências interestaduais em que os créditos serão assegurados:
I – pela unidade federada de destino, por meio de transferência de crédito, limitados aos percentuais estabelecidos nos termos do inciso IV do § 2° do art. 155 da Constituição Federal, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada;
II – pela unidade federada de origem, em caso de diferença positiva entre os créditos pertinentes às operações e prestações anteriores e o transferido na forma do inciso I deste parágrafo. § 5º Alternativamente ao disposto no
4° deste artigo, por opção do contribuinte, a transferência de mercadoria para estabelecimento pertencente ao mesmo titular poderá ser equiparada a operação sujeita à ocorrência do fato gerador de imposto, hipótese em que serão observadas:
I – nas operações internas, as alíquotas estabelecidas na legislação;
II – nas operações interestaduais, as alíquotas fixadas nos termos do inciso IV do § 2° do art. 155 da Constituição Federal.” (NR)
Art. 2º Revoga-se o § 4º do art. 13 da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir).
Art. 3º Esta Lei Complementar entra em vigor em 1º de janeiro de 2024.
[4] Citamos aqui o caso do ICMS nas vendas não presenciais do RE 1.287.019 (Convênio 93/2015) e a cobrança de ICMS, pelo Estado de destino, com base no Protocolo ICMS 21/2011 do CONFAZ.