O STF e o Direito do Trabalho: um ano que já começa relevante

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O Direito do Trabalho já começa 2024 com desafios no Supremo Tribunal Federal (STF). As primeiras sessões virtuais do ano, marcadas para acontecerem entre os dias 2 e 9 de fevereiro, tem em sua pauta o ARE 1.458.842, de relatoria da ministra Cármen Lúcia. Um caso que suscita reflexões processuais e materiais da maior relevância.

O ARE desafia acórdão do Tribunal Superior do Trabalho (TST), proferido no Incidente de Recursos Repetitivos 872-26.2012.5.04.0012, que, por apertada maioria (7 a 6), concluiu que o Programa de Orientação para Melhorias – que vigorou no Walmart Brasil entre 2006 e 2014 e facultava aos gestores do grupo debaterem com seus subordinados, quando possível, soluções para a superação de casos de performance insatisfatória ou de condutas inadequadas antes de dispensá-los – constituiria “regulamento empresarial com natureza jurídica de cláusula contratual, que adere em definitivo ao contrato de trabalho dos empregados admitidos antes ou durante o seu período de vigência, por se tratar de condição mais benéfica que se incorpora ao seu patrimônio jurídico, nos termos e para os efeitos do artigo 7º, caput, da CF, dos artigos 444 e 468 da CLT e da Súmula 51, item I, do Tribunal Superior do Trabalho”.

Em razão disso, o TST determinou que todas as demissões que não tenham observado integralmente a referida política interna (independentemente de seu ensejo) seriam nulas e dariam direito “à reintegração ao serviço, na mesma função e com o pagamento dos salários e demais vantagens correspondentes”.

O caso é emblemático sob muitos aspectos.

Primeiro porque, na prática, o acórdão do TST (i) estabeleceu uma nova espécie de estabilidade para os empregados sujeitos à política em questão, não prevista na Constituição; (ii) impôs um dever inexequível de reintegração desses empregados – alguns deles afastados há quase 15 anos –, a despeito de terem recebido todas as verbas rescisórias quando de sua dispensa; (iii) criou uma nova espécie indenizatória, em prejuízo do direito potestativo do empregador de desligar empregados (inclusive por fatores técnicos, financeiros ou setoriais), o qual conta inclusive com assento constitucional, imputando-lhe ônus financeiro extremamente gravoso e desproporcional, que põe em risco a própria continuidade da atividade econômica e, por consequência, dos empregos hoje por ela gerados e mantidos; (iv) desconsiderou as consequências decorrentes dessa decisão, dado o risco à saúde financeira da empresa, em violação à liberdade de iniciativa e ao princípio da função social da empresa; e (v) criou custos obrigatórios adicionais com potencial de gerar impactos substanciais sobre a liberdade de concorrência, diante da instituição de hipótese de estabilidade por decisão judicial que se aplica apenas àquelas empresas detentoras de políticas dessa natureza. Por tudo isso, é possível afirmar que o acórdão do TST violou direta e frontalmente os arts. 1º, IV, 2º, 7º, I a III, 8º, VIII, e 170 da Constituição da República, bem como o art. 10 do ADCT.

Segundo, porque o recurso extraordinário interposto contra o acórdão proferido em IRR deveria ter tido reconhecida sua repercussão geral presumida e seu efeito suspensivo ope legis, a teor do art. 987, §1º, c/c art. 15, do CPC, e dos arts. 169, 170 e 327 do Regimento Interno do TST. Tal conclusão decorre do fato de que o atual CPC (Lei 13.105/2015) foi promulgado e entrou em vigor após a edição da Lei 13.015/2014, que instituiu a sistemática do Incidente de Recursos Repetitivos na CLT. Decorre, ainda, da lógica do sistema de precedentes brasileiro[1], que, muito embora se abra à interpretação adotada por outros tribunais por meio de incidentes voltados à solução de recursos repetitivos, determina que a última palavra em matéria constitucional é, como não poderia deixar de ser, do STF.

Logo, conquanto a CLT não estabeleça, expressamente, que os recursos extraordinários interpostos contra acórdãos que julgam tais incidentes têm efeito suspensivo e repercussão geral, isso, claramente, é consectário da sistemática do julgamento desses incidentes, cujo produto não pode ser aplicado antes de esgotadas as instâncias revisoras de formação do precedente. Essa compreensão já foi chancelada pelo STF.

Na Pet 7.755, por exemplo, reconheceu-se a aplicação da previsão do art. 987, § 1º, do CPC, aos acórdãos proferidos em sede de IRR do TST. Ou seja: houve equiparação entre os regimes do IRDR e do IRR, de modo “que do julgamento do mérito de um tal incidente, caberá recurso extraordinário, que será dotado de efeito suspensivo, ‘presumindo-se a repercussão geral da questão constitucional eventualmente discutida’” (artigo 987, § 1º do CPC)”.[2]

No caso específico, a vice-presidência do TST negou processamento ao recurso extraordinário interposto pela empresa nos autos do IRR 872-26.2012.5.04.0012. Não passa despercebido que a decisão sustentou que a insurgência demandaria a reanálise de cláusulas contratuais e de provas, quando, na realidade, a própria admissão do processamento do IRR no âmbito do TST exigira que a controvérsia fosse fundada em “questão de direito” (art. 896-C, caput, da CLT). Aliás, sequer o próprio TST poderia reexaminar o acervo probatório[3],caso isso realmente fosse necessário à apreciação da questão posta.

Além disso, a decisão afirmou que se trataria de mera discussão de legislação infraconstitucional, muito embora se verifiquem, apenas na ementa do acórdão impugnado, nada menos do que 14 passagens que invocam 6 dispositivos constitucionais (art. 3º, I e IV; art. 5º, caput e inciso XXXVI; 7º, caput e inciso I). Nada se falou, todavia, sobre o efeito suspensivo automático e sobre a repercussão geral presumida das questões constitucionais.

Terceiro, porque, mesmo que o incidente não tivesse efeito suspensivo ope legis e repercussão geral presumida, nos termos do art. 987, §1º, do CPC, ainda assim o caso seria de reconhecimento de sua repercussão geral. Basta ver que a controvérsia gira em torno de temas relativos à liberdade de gestão da atividade empresarial, à instituição de nova hipótese de estabilidade laboral não albergada pela Constituição e à impossibilidade de demissão de empregados sem a observância da POM. Ou seja, discussões relevantes do ponto de vista econômico, social e jurídico, que ultrapassam os interesses estritamente subjetivos das partes no processo – e foi por isso que o próprio TST admitiu a existência de multiplicidade de outras demandas e deu processamento ao IRR.

Para além de impactar um conjunto relevante de processos – estimado em aproximadamente 2.500 somente no caso do então grupo Walmart Brasil –, a decisão do TST pode impactar outros grupos econômicos que adotem programas semelhantes (ou desestimular outros muitos que pretendessem implantá-los), os quais buscam dar transparência a processos de avaliação, por receio de que referidos planos sejam considerados vinculantes e irretratáveis. Tudo, repita-se, com prejuízos irreparáveis à empresa e à liberdade do empregador. Ante tal cenário, por suposição, mesmo que o recurso extraordinário interposto contra o acórdão do IRR 872-26.2012.5.04.0012 não reunisse as condições de processamento, seria o caso de o tribunal selecionar outro, sobre a mesma controvérsia jurídico-constitucional, conforme preconizado pelo artigo 1.036 do CPC em vigor.

Quarto, porque se trata, com todas as vênias, de descolamento em relação “à forte centralização decisória adotada pela Constituição Federal de 1988, em que a decisão final de questões jurídicas ocorrem, efetivamente, com a apreciação da matéria pelo Supremo Tribunal Federal – quando a questão envolver a interpretação da Constituição Federal”. Essas são palavras do ministro Luiz Fux por ocasião de pronunciamento sobre a existência de repercussão geral do primeiro recurso extraordinário interposto contra julgamento de mérito em IRDR[4].

É justamente por isso, aliás, que o art. 896-C da CLT dispõe que, nas hipóteses de IRRs, “caso a questão afetada e julgada sob o rito dos recursos repetitivos também contenha questão constitucional, a decisão proferida pelo tribunal pleno não obstará o conhecimento de eventuais recursos extraordinários sobre a questão constitucional” (§ 13).

O dispositivo também determina que, “aos recursos extraordinários interpostos perante o Tribunal Superior do Trabalho será aplicado o procedimento previsto no art. 543-B da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973” (§ 14); e que “o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho poderá oficiar os Tribunais Regionais do Trabalho e os Presidentes das Turmas e da Seção Especializada do Tribunal para que suspendam os processos idênticos aos selecionados como recursos representativos da controvérsia e encaminhados ao Supremo Tribunal Federal, até o seu pronunciamento definitivo” (§ 15).

Na mesma linha, o § 2º do art. 987 do CPC estabelece que, “apreciado o mérito do recurso, a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito”.

O fato, no entanto, é que a decisão da vice-presidência do TST obrigou o Walmart (sucedido pelo Grupo BIG, recentemente adquirido pelo Grupo Carrefour) a interpor o ARE mencionado no início deste artigo, formulando pedido de atribuição de efeito suspensivo autônomo ao STF (Pet 11.670), que foi deferido.[5] Posteriormente, contudo, a ministra Cármen Lúcia decidiu pelo desprovimento do recurso, embora o tenha feito sem tecer considerações sobre o regime jurídico dos recursos extraordinários em sede de IRRs, conforme a decisão que é objeto do agravo interno ora pautado.

Sem dúvida, trata-se de julgamento que será um divisor de águas. Estão na mesa temas constitucionais de direito material e processual da maior envergadura, incluindo direitos e liberdades fundamentais, assim como a integridade do próprio sistema de precedentes brasileiro. Fiquemos atentos.

[1] Embora tradicionalmente associado ao sistema romano-germânico, o ordenamento jurídico brasileiro passou, especialmente nos últimos vinte anos, a se orientar à construção de um arcabouço de valorização dos precedentes. Dentre os principais objetivos dessa reconfiguração, destacam-se a necessidade de promover isonomia e uniformidade na administração do Direito em um país de dimensões continentais, bem como conferir tratamento racional e eficiente à atividade jurisdicional em um cenário marcado por enorme litigiosidade e, consequentemente, pelo assoberbamento dos tribunais.

[2] STF, Pet. nº 7.755, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, julgado em 13.8.2018.

[3] Verbete nº 126 da Súmula do TST: “Incabível o recurso de revista ou de embargos (arts. 896 e 894, “b”, da CLT) para reexame de fatos e provas”.

[4] STF, RE 1293453 RG, Rel. Ministro Presidente Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 18-03-2021.

[5] A Exma. Min. Relatora, em um primeiro momento, concedeu medida cautelar para conferir efeito suspensivo ao recurso (cf. decisão nos autos da Pet nº 11.670), reconhecendo, em juízo de delibação, que “a imposição judicial para adoção de determinada política empresarial por tempo indefinido pelo Grupo econômico poderia, em tese, criar nova espécie de estabilidade para os empregados e limitação ao direito do empreendedor de organizar e gerir seu negócio, o que ofenderia os princípios da legalidade, da livre-iniciativa e da liberdade econômica”. Vislumbrou, ainda, no juízo liminar, que a decisão do TST poderia “conferir indevida limitação judicial imposta à esfera de disponibilidade dos empreendedores e, diversamente do que parece ser o propósito da decisão impugnada, poderia servir de elemento de dissuasão para que outros grupos econômicos adotem programa semelhante, pelo receio que teriam de que este viesse no futuro a ser declarado vinculante e irretratável, incorporando-se definitivamente ao patrimônio jurídico de seus empregados”, bem como “parece impor ao requerente conjunto de limitações à gestão empresarial capaz de prejudicar o equilíbrio concorrencial, por criar um custo adicional e fixo a incidir apenas em relação ao grupo econômico composto pelo requerente”.