O Supremo Tribunal Federal frequentemente justifica sua atuação invocando o preceito da inércia jurisdicional: juízes não teriam o poder de escolher o que decidem, nem o que não decidem. Como não têm o poder de iniciar ações judiciais, seriam outros atores sociais que levariam até o tribunal os casos que, mais do que um poder, teriam o dever de decidir.
Questionados sobre os temas de ativismo judicial, judicialização da política ou da suposta invasão de atribuições de outros poderes, ministros tendem a afirmar sua passividade diante dos processos judiciais, os quais seriam movidos por partes (essas sim, ativas em seu questionamento) e diante das quais, seriam, por definição, imparciais no exercício do poder-dever jurisdicional: decidir a controvérsia dizendo qual seria a correta interpretação do direito.
No entanto, por mais que ainda seja invocada retoricamente, há muito é difícil levar a sério a capacidade desse conceito jurídico de efetivamente orientar ou descrever as práticas institucionais do Supremo. A “inércia” tem gradativamente perdido qualquer resquício de capacidade de justificar a atuação (ou inação) do tribunal. Esse Supremo em teoria “inerte” se move, sim, mas a ideia de inércia não explica o que o faz se mover ou não.
Um primeiro ponto é que o tribunal se move por conta própria, como deixou evidente o chamado “inquérito das fake news” (Inq. 4781), iniciado em 2019 diretamente pelo então presidente, ministro Dias Toffoli, e atribuído pelo mesmo ao ministro Alexandre de Moraes, como seu relator. Os últimos anos foram tempos de relativização da inércia nesse e em outros inquéritos conduzidos em meio aos ataques sofridos pelo tribunal. Período em que, em meio a justificativas conjunturais, diante de ataques por parte do próprio Executivo e da passividade do Ministério Público, vimos o tribunal contornando limites institucionais em nome da autodefesa.
Quanto à capacidade do tribunal de evitar decidir uma questão, que se espalha em inúmeros poderes individuais (dos relatores, do presidente, dos vogais), em ambiente síncrono e virtual, a atual presidência trouxe um eloquente exemplo. O ministro Luís Roberto Barroso tem afirmado que não pautará o julgamento da ADPF 442 – protocolada em 2017 e cujo julgamento se iniciou com o voto de sua então relatora Rosa Weber, em setembro de 2023 – porque o sentimento social sobre a questão não está, segundo o ministro, suficientemente amadurecido.
Mas, como sabemos, esse poder de não decidir não é exercido de maneira exclusiva – ou mesmo necessariamente dominante – pelo presidente do Supremo, como revelou o recente julgamento do Recurso Extraordinário (RE 845.779), do qual o ministro Barroso é relator. Em sede de Repercussão Geral, reconhecida em 2015, discutia-se a violação de direitos fundamentais de pessoa trans que tenha sido impedida de utilizar o banheiro corresponde ao gênero com o qual se identifica. O relator se deparou com decisão de maioria do plenário, liderada pelo ministro Luiz Fux (já que havia pedido vista nesse processo em 2015) para cancelar o reconhecimento da Repercussão Geral, tendo ficado vencidos os ministros Barroso, Fachin e a ministra Cármen Lúcia.
Independentemente de discussões específicas sobre a necessidade de pré-questionamento e da relação entre o recurso extraordinário paradigma em concreto e o julgamento mais amplo de uma tese em repercussão geral, é notável nesse caso o quanto o tribunal não é inerte. Qualquer explicação sobre o porquê de depois de dez anos esse caso ter sido finalmente pautado passa necessariamente por uma discussão de motivações do ministro que atualmente preside o tribunal.
Qualquer explicação do inusitado cancelamento do reconhecimento de repercussão geral em um caso cujo julgamento se iniciou há dez anos passa necessariamente por especulações sobre as crenças – do ministro Fux e dos demais ministros que o seguiram – sobre o mérito dessa demanda e sobre a conveniência de se decidir essa questão na atual conjuntura. De qualquer modo, o papel ativo dos ministros do Supremo é mais do que evidente.
Nesse caso, segundo o ministro Fux, não teria sido levantada uma questão constitucional pela recorrente, mas sim uma questão de fato, que teria sido assentada pelo tribunal inferior, sobre se “a abordagem havida se deu de modo rude ou impulsionada por preconceito ou transfobia”. Com base nisso, Fux negou a existência de repercussão geral perguntando: “Onde está a questão constitucional neste caso?”.
Enquadrar a questão dessa forma equivaleria, em um caso que um cidadão afirmasse que foi impedido de se sentar em um determinado assento de um ônibus ou de estudar em uma determina escola pela existência de regras de segregação racial, a se perguntar se “a abordagem havida se deu de modo rude ou impulsionada por preconceito”. Para além desse problema, porém, é difícil crer que em um caso como esse, conseguir ver ou não “onde está a questão constitucional neste caso” não depende fundamentalmente do que ministros do tribunal querem ou não enxergar.
A diferença entre esses dois últimos casos parece ser a opinião específica do ministro Barroso sobre ser esse ou não o melhor momento para se decidir uma questão constitucional relacionada à garantia de direitos fundamentais de minorias. Mas há algo em comum: a falta de interesse de uma maioria do tribunal (com ou sem seu presidente nessa maioria) em se mover sobre esses temas – seja por razões substantivas (a maioria não concorda com a decisão), seja por razões de timing (a maioria considera que, na atual conjuntura, o tribunal deveria evitar conflitos com setores sociais e do Congresso).
Para ver como se trata de questão de escolha, não de exigência ou limite institucional, considere que, quando se trata de garantir seus próprios direitos e defender seus próprios membros de ataques, qualquer reticência ou barreira técnica desaparece.
Não faltou criatividade hermenêutica, coragem ou capacidade política e institucional para o Supremo se organizar para combater aqueles que ameaçavam a instituição, mesmo que para isso tivessem que contornar limites processuais ou entrar em conflito direto com o Executivo e o Legislativo revendo, inclusive, sua compreensão sobre imunidades processuais e materiais de legisladores e outros atores políticos.
Observadores atentos do Supremo sem dúvida constatarão com razão que, por mais que o tribunal afirme a sua inércia, ainda assim ele se move. Apenas não se movimenta com a mesma velocidade ou direção em nome da garantia de certos direitos fundamentais.
Ao encerrar o julgamento em que se cancelou o reconhecimento da repercussão geral no RE 845.779, o ministro Barroso, claramente inconformado com a decisão colegiada, ao ser informado pela ministra Cármen Lúcia de que haveria uma ADPF (1.1699) sobre o mesmo tema sob sua relatoria declarou: “Vai voltar”. No entanto, resta ver se o tribunal realmente se moverá ou não para que isso ocorra, bem como saber quanto tempo ainda demorará para que o Supremo decida ser momento conveniente para se garantir direitos fundamentais de pessoas trans no Brasil.