O STF e a governança judicial ecológica

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Assim como ocorreu e segue a ocorrer em outros domínios, também o Direito Ambiental, e, portanto, a proteção do meio ambiente, tem experimentado um processo de mudanças significativo, não só, mas também no Brasil, o que pode ser, em termos didáticos, bem visualizado mediante referência ao magistério de Antônio Herman Benjamin, atual ministro presidente do STJ, o qual identifica três fases na evolução legislativa em matéria ambiental.

A primeira fase, denominada fase da exploração desregrada ou do laissez-faire ambiental, que vai do ano 1500 até aproximadamente o início da segunda metade do século 20, foi marcada pela quase ausência de regulamentação legislativa sobre o uso de recursos naturais.

A segunda fase, denominada fase fragmentária, vai da década de 1960 até a edição da Lei 6.938/81, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (LPNMA) com a qual se inaugura o terceiro período, intitulado pelo autor como fase holística, em que o meio ambiente passa a ser protegido de forma integral e com autonomia valorativa, ou seja, como bem jurídico autônomo. (BENJAMIN, Antonio Herman. Introdução ao direito ambiental brasileiro. In: Revista de direito ambiental, São Paulo: RT, vol. 14, 1999).

Ainda nesse contexto, calha destacar que ao longo da terceira fase acima referida, é possível identificar, em termos legislativos, a abertura de duas frentes, a primeira, demarcada pela já mencionada entrada em vigor da LPNMA, ao passo que o segundo eixo, encontra seu ponto de partida com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF), que foi a primeira na história constitucional brasileira a contemplar um capítulo próprio para a questão ambiental, ademais de recepcionar e fortalecer toda a principiologia e regramentos da LPNMA.

De lá para cá houve tanto uma expansão em termos legislativos no plano infraconstitucional, em regra pautada pelo mote do fortalecimento do regime jurídico da proteção ambiental, dando cada vez maior concretude ao programa normativo da CF, quanto um movimento de ampliação, em nível quantitativo e qualitativo, do papel do Poder Judiciário no que diz com a atribuição de efetividade ao direito fundamental a um meio ambiente saudável equilibrado, tal como consagrado no artigo 225, caput, CF, ademais dos correspondentes deveres de proteção estatais e instrumentos positivados, de modo expresso e implícito, na “Constituição Ecológica” brasileira, destacando-se aqui a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), de tal sorte que é possível falar até mesmo de uma espécie de “governança judicial ecológica”.

Tendo em conta as limitações “espaciais” do presente texto e de se tratar de uma coluna vinculada ao Observatório de Justiça Constitucional, o objetivo é de fazer um breve e seletivo inventário de algumas das principais contribuições do STF para a proteção do meio ambiente, de modo a demonstrar o quanto a Suprema Corte brasileira se transformou num ator indispensável à causa da concretização dos princípios estruturantes do Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito formatado pela CF. Aliás, antes de avançar é de se lembrar aqui o julgamento do caso do novo Código Florestal, onde o STF qualificou a CF como sendo uma Constituição Verde. Tomando de empréstimo as palavras do ministro Luiz Fux:

“No Brasil, não obstante constituições anteriores tenham disciplinado aspectos específicos relativos a alguns recursos naturais (água, minérios etc.), a Carta de 1988 consistiu em marco que elevou a proteção integral e sistematizada do meio ambiente ao status de valor central da nação. Não à toa, a comunidade internacional a apelidou de Constituição Verde, considerando-a a mais avançada do mundo nesse tema”.[1]

Mas o “esverdeamento” da CF patrocinado pelo STF já havia iniciado antes, quando do julgamento do MS 22.164/SP, em que a Corte reconheceu, em meados da década de 1990, que o direito ao meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado consagrado no artigo 225, caput, CF, é um direito fundamental:

“(…) O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade”.[2]

Essa decisão – e as que depois a confirmaram –, que hoje pode até mesmo soar como tendo dito o óbvio, não pode ser em absoluto subestimada, porquanto o direito a um meio ambiente saudável não foi previsto no Título II da CF, ademais de não ser cogente a sua qualificação como direito fundamental, a exemplo do que sucede, apenas em caráter ilustrativo, na Alemanha e na Espanha.

Além disso, deve-se também ao STF a afirmação da circunstância de que a proteção ambiental tem uma dupla dimensão no ordenamento jurídico brasileiro, operando tanto como objetivo e tarefa do Estado, quanto na condição de direito e dever fundamental do indivíduo e da coletividade, conforme bem demonstra o seguinte excerto extraído do julgamento do já citado caso do novo Código Florestal:

“(…) o meio ambiente assume função dúplice no microssistema jurídico, na medida em que se consubstancia simultaneamente em direito e em dever dos cidadãos, os quais paralelamente se posicionam, também de forma simultânea, como credores e como devedores da obrigação de proteção respectiva”.[3]

Dito de outro modo, além de ensejar deveres de proteção vinculativos de todos os órgãos estatais, o direito fundamental a um meio ambiente saudável e equilibrado incide também nas relações privadas, ademais de assumir a condição de dever fundamental, tratando-se, portanto, de autêntico direito-dever.

Nessa mesma toada, o precedente (já referido) do caso Fundo Clima é particularmente relevante, quando, na parte final, consigna expressamente a vinculação direta da sociedade civil à norma constitucional. Ou seja, o artigo 225, CF, aplica-se às relações entre particulares (em face de pessoas físicas e jurídicas), impondo deveres e responsabilidades de proteção ecológica (ex. prevenção e reparação de danos).

Outro desenvolvimento importante no âmbito da práxis do STF, diz respeito a necessidade de um interpretação integrada e sistemática da ordem jurídica – inclusive da própria CF – de modo a assegurar a máxima eficácia e efetividade ao direito fundamental à proteção ambiental. É ilustrativa, nesse sentido, a interpretação conferida ao artigo 170 da Constituição Federal pela Suprema Corte, como bem ilustra a passagem que segue da decisão da proferida no julgamento da ADI 3.540/DF:

“A utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, dentro os quais avulta, por sua significativa importância, o direito a preservação do meio ambiente. Essa asserção torna certo, portanto, que a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente (…) que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, aquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente”.[4]

De particular relevância também o fato de que por força da fecunda jurisprudência do STF nessa seara, os principais princípios (gerais e especiais) relacionados à proteção ambiental, ainda que não tendo sido expressamente positivados no texto da CF, foram reconhecidos como tendo estatura constitucional, na condição de princípios implicitamente positivados. Foram adotados na Constituição Federal, na LPNMA e em outras leis escritas.

Apenas para citar alguns exemplos, colaciona-se o princípio do poluidor-pagador, incorporado pelo artigo 4º, VII, da LPNMA, mas tido pela Suprema Corte como tendo matriz constitucional. São ilustrativas as seguintes passagens dos votos dos ministros Alexandre de Moraes e Edson Fachin, proferidos no caso Novo Código Florestal (respectivamente):

“Assim, é em consonância com o disposto no art. 225, § 3º, da CRFB, que se deve ler a regra constante da Declaração do Rio de que o ‘poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição’, medida que deve ter por estimação, conquanto difícil, a reparação dos danos causados, de modo a restaurar os processos ecológicos essenciais”.

Da mesma forma, o STF reconhece que os princípios da prevenção e da precaução estão contidos no artigo 225, caput, da Constituição Federal. Conforme destacado pelo ministro Gilmar Mendes, no julgamento do STF da ADPF 640:

“O artigo 225 da Constituição, ao impor à coletividade e ao Poder Público o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, dispõe sobre um dever geral de prevenção dos riscos ambientais, na condição de uma ordem normativa objetiva de antecipação de futuros danos ambientais, que são apreendidos juridicamente pelos princípios da prevenção (riscos concretos) e da precaução (riscos abstratos)”.[5]

Outro princípio de grande relevância, também já reconhecido pelo STJ, é o in dubio pro natura, que, segundo o STF, decorre do princípio constitucional de precaução:

“[N]esses dias de dúvidas e perplexidades nos quais vivemos, penso que o critério para lidar-se com ações que possam interferir com o meio ambiente, especialmente quando a informação científica for incompleta ou inconclusiva, deve pautar-se pela deliberada abstenção ou restrição, segundo o postulado in dubio pro natura, em homenagem aos hoje amplamente consagrados princípios da precaução e do cuidado”.[6]

Como último princípio a ser citado, vale mencionar o da proibição de retrocesso ambiental, igualmente consagrado pelo STF na condição de um princípio constitucional implícito:

“Não se tem, expresso, no texto da Constituição da República a proibição do retrocesso em matéria de direitos fundamentais de terceira e de quarta dimensão. Entretanto, quanto ao meio ambiente, esse preceito deriva diretamente do caput de seu art. 225, ao garantir a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impor ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e    preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.[7]

Outro importante contributo do STF foi a afirmação, em 20 de abril de 2020, no julgamento do RE 654.833/AC, do tema de Repercussão Geral 999, da seguinte tese vinculante: “é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental”.[8]. A decisão do STF renova, assim, o conteúdo e a interpretação de institutos jurídicos de natureza privada e regulados pelo Código Civil – no caso, o regime jurídico da prescrição – com base no Direito Constitucional Ambiental.

Encerrando a listagem – reitere-se, meramente ilustrativa – não poderia ser esquecida a já referida decisão proferida pelo STF no caso Fundo Clima (ADPF 708), julgado em julho de 2022, em que foi fortalecida orientação anterior e consolidado o entendimento de que os tratados internacionais em matéria ambiental devem ser equiparados aos tratados de direitos humanos, de tal sorte a terem a mesma hierarquia supralegal. Com isso, aliás, o STF deu mais um importante passo no sentido da sua aproximação com o Direito Internacional e da afirmação de que o Estado Democrático, Social e Ecológico de Direito brasileiro é também um Estado constitucional aberto e cooperativo.

Ainda que o número de julgados e a diversidade das questões enfrentadas seja muito maior, já é possível perceber o quão importante e decisiva tem sido a contribuição do STF para a proteção ambiental no Brasil, inclusive no que diz respeito aos desafios postos pelas mudanças climáticas.

Nesse sentido, o STF passou a ocupar também – sem que se esteja aqui a desconsiderar o papel predominante que cabe aos Poderes Legislativo e Executivo – um lugar de destaque no âmbito de uma governança ecológica, o que se revela particularmente benfazejo quando já se sabe (a despeito dos que não o querem saber) que cada vez mais o direito a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado assume a posição de um “direito a ter direitos efetivos”.

[1] Caso Novo Código Florestal, STF, ADC 42/DF, Plenário, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 28 de fevereiro de 2018, p. 50.

[2] STF, MS 22.164/SP, Plenário, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em 30 de outubro de 1995, Ementa, p. 2-3. No mesmo sentido, mais recentemente, destaca-se o seguinte trecho do voto do Ministro Roberto Barroso proferido no julgamento do Caso Fundo Clima (ADPF 708):  “(…) a melhor interpretação a ser conferida ao art. 225 da CRFB [Constituição Federal] é aquela que identifica o direito ao meio ambiente como verdadeiro direito fundamental, a fazer atrair, por exemplo, o disposto no art. 5º, § 2º, da CRFB.”

[3] Caso Novo Código Florestal, STF, ADC 42/DF, Plenário, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 28 de fevereiro de 2018, p. 2.

[4] STF, ADI 3.540/DF, Plenário, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em 01 de setembro de 2005, p. 36.

[5] STF, ADPF 640, Plenário, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 10 de setembro de 2021, p. 16.

[6] Caso Novo Código Florestal, STF, ADC 42/DF, Plenário, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 28 de fevereiro de 2018, p. 470.

[7] Caso Novo Código Florestal, STF, ADC 42/DF, Plenário, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 28 de fevereiro de 2018, voto-vista da Relatora Ministra Carmen Lúcia, p. 225.

[8] STF, RE 654.833/AC, Plenário, Relator Ministro Alexandre de Moraes, julgado em 20 de abril de 2020, Ementa, p. 2.