O STF ao lado da transfobia

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No último dia 6 de junho, o Pleno do STF encerrou o julgamento do Recurso Extraordinário 845.779, que tinha por objeto o direito de pessoas transexuais a serem tratadas socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, a partir do caso concreto de uma mulher trans que teve acesso negado ao banheiro feminino de um shopping.

A maioria dos ministros, vencidos os ministros Barroso, Fachin e Cármen Lúcia, entendeu não haver questão constitucional, cancelando a repercussão geral anteriormente conhecida, para não admitir o recurso e, portanto, não enfrentar a questão de fundo.

Deve-se lembrar que o processo já havia sido objeto de uma primeira sessão de julgamento, após o reconhecimento da repercussão geral, no já longínquo ano de 2015, em que foram proferidos dois votos no mérito, do ministro relator Barroso e do ministro Fachin.

Em que pese os votos na ocasião tenham sido favoráveis aos direitos de pessoas trans, o tribunal já dava sinais de desconforto com o tema, e o pedido de vista do ministro Fux que interrompeu o julgamento, foi justificado com base na necessidade de “se ouvir a sociedade” diante de um “desacordo moral razoável”, como se direitos individuais se submetessem à opinião pública. 

O julgamento restou suspenso por nove longos anos, até retornar à análise do plenário e receber este melancólico fim. A surpresa – para não dizer exasperação – em torno do desfecho requer um esforço analítico crítico para tentar explicar o que aconteceu e o porquê aconteceu.

Uma primeira dimensão de análise leva ao debate sobre como o direito processual pode ser manejado estrategicamente para limitar a possibilidade do STF cumprir o seu papel de proteção de grupos vulneráveis, graças a um arsenal de pressupostos e requisitos de admissibilidade de que podem se valer os ministros para decidir não decidir, em detrimento da vida e dos direitos de sujeitos reais. O tema foi especificamente explorado à luz deste julgado em artigo recente publicado aqui no JOTA.

Outra dimensão de análise envolve a interpretação política da postura adotada pelo STF. Que ordem de fatores extrajurídicos podem ter influenciado a (não) tomada de decisão dos ministros? De que maneira o contexto político-social e as consequências da decisão podem ter calibrado a resposta judicial? 

Com efeito, embora a teoria constitucional defina que a proteção de minorias é uma das funções essenciais de um Tribunal Constitucional, o grau de vulnerabilidade e estigma sofrido por um determinado grupo social modula a capacidade de resposta judicial, na medida em que quanto mais marginalizada a população a ser protegida, maior a resistência social e institucional à sua proteção.

Neste sentido, revelador que o “freio de arrumação” processual tenha ocorrido justamente para vedar a garantia de direitos de pessoas trans, nas palavras do ministro Barroso, “uma das minorias mais marginalizadas e estigmatizadas da sociedade”.

Um fator levado em consideração pelos tribunais ao decidir diz respeito ao risco de descumprimento da decisão. Não é por acaso que direitos de alteração de status jurídico formal, como acontece com a união estável (ADI 4.277 e ADPF 132), que não são imediatamente percebidos nas interações sociais cotidianas, sejam mais facilmente garantidos pelos tribunais. Da mesma forma, também são mais fáceis de tutelar direitos cujo potencial de descumprimento advenha de um número limitado e controlável de agentes, como no caso da doação de sangue por homens gays (ADI 5543).

Ambos os fatores estavam presentes no julgamento da alteração de registro civil de pessoas trans (RE 670.422 e da ADI 4275): um direito “formal”, cujo eventual descumprimento decorreria de cartórios e tribunais, já submetidos ao controle do CNJ e STF.

No caso do julgamento do Recurso Extraordinário 845.779, por outro lado, a tese proposta pelo ministro Barroso teria a consequência ampla de obrigar o respeito à identidade de gênero de pessoas trans em todos os espaços sociais, por uma generalidade indeterminável de sujeitos e instituições públicas e privadas. Por tal motivo, em 2018, afirmei que “uma eventual decisão arrojada poderia tornar, por exemplo, qualquer banheiro público ou provador de loja um potencial epicentro de desrespeito a um acórdão do Supremo”.

Outro fator levado em consideração é o risco de ataque institucional que uma decisão protetiva a uma minoria impopular pode incentivar. Diante de um Congresso Nacional profundamente conservador – para não dizer reacionário – para o qual as hipóteses de aborto legal previstas pelo legislador de 1940 parecem soar liberais demais, e de uma extrema direita brasileira que elegeu o STF como inimigo público número um, a exigência de que pessoas trans fossem tratadas sem discriminação poderia despertar a fúria dos parlamentares “defensores da família” contra o tribunal. Assim, nesse embate de forças, parece ter vencido a pusilanimidade institucional em prol da tradicional cordialidade brasileira, e às favas com os direitos de pessoas trans. 

Parece irônico, inclusive, que o tribunal que procura projetar uma imagem heroica de si mesmo como paladino dos vulneráveis (basta ver os temas escolhidos para as coletâneas e cadernos de jurisprudência pelo tribunal) tenha esmerilado preliminares processuais para recusar a tutela de direitos de minorias.

Nas palavras do ministro Fux – que iniciou a divergência, à qual em acelerada sucessão aderiu a maioria do tribunal, e vai ser o redator do acórdão – não se poderia superar “preliminar processual intransponível” para proteger pessoas trans, sob risco de “vulgarizarmos a jurisdição constitucional”. A situação kafkiana de desreconhecer a repercussão geral após duas sessões presenciais, nove anos de vista e votos no mérito proferidos não pareceu sensibilizar a maioria formada.

O ministro Fux inclusive recordou votos pretéritos a favor da população LGBTQIA+ para justificar a recusa de tutela neste caso (“estamos cansados de proteger essa comunidade”), sem deixar de se referir a autora do recurso no masculino, como “o autor”. Como bem colocou o ministro Barroso, “todos vimos” a preocupação do STF com a proteção de pessoas trans.

Outra hipótese que não pode ser desconsiderada diz respeito a própria contrariedade íntima dos julgadores com o tema. Juízes são, ainda, pessoas de carne e osso, dotados de suas subjetividades e preconceitos. Neste sentido, questiona-se em que medida os ministros podem ser mais ou menos “terrivelmente” transfóbicos. Revelador que uma questão central no debate envolvia a verificação da ocorrência ou não de discriminação assentada no acórdão de 2º grau recorrido.

O ministro Fux deu destaque especial a falta de provas de que a retirada da autora do banheiro feminino pela funcionária do shopping teria ocorrida de forma rude ou grosseira, ignorando que a retirada em si já é discriminatória e violadora da sua dignidade. A ideia naturaliza a discriminação contra pessoas trans, ao legitimar o tratamento desigual, desde que não haja violência explícita. 

Naquele mesmo texto de 2018, afirmei que o STF no julgamento do Recurso Extraordinário 845.779 tinha um “encontro marcado com a maneira pela qual deseja entrar para história em face do clima obscurantista e reacionário que tem marcado o contexto político nos últimos anos”. Infelizmente, o STF neste caso entrou para a história como cúmplice da transfobia, a partir de um de ultraformalismo processual de ocasião.

Fato é que o tema deve retornar à pauta do STF. Na mesma sessão, a ministra Cármen Lúcia noticiou a existência da ADPF 1169, de sua relatoria, e que trata da mesma questão de fundo. A verificar se o tribunal dessa vez vai enfrentar a discussão do tratamento social de pessoas trans ou vai recorrer a outro artifício processual para manter o debate longe da corte, e a discriminação sofridas por pessoas trans como não preocupação judicial.