O split payment no IBS

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A Emenda Constitucional 132/2023 (reforma tributária) trouxe importantíssimo dispositivo para a disciplina do aproveitamento de créditos relativos ao novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com relevante impacto para o combate à sonegação tributária. Trata-se do que a doutrina convencionou chamar, na expressão em inglês, de split payment.

O mecanismo consiste na repartição, quando do pagamento pela aquisição do bem ou serviço, do valor referente ao tributo do valor destinado ao vendedor. Em outras palavras, adotando-se a sistemática do split payment, no momento do pagamento pela operação comercial o valor é cindido para i) quitação da obrigação tributária e ii) pagamento do bem adquirido de acordo com a pretensão do fornecedor. Cada quantia é, então, destinada ao credor apropriado.

O modelo está previsto no novel art. 156-A, §5º, II, acrescentado à Constituição Federal com a seguinte redação:

Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. […]

5º Lei complementar disporá sobre: […]

II – o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que:

a) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços; ou

b) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação;

A alteração constitucional permite que Lei Complementar Nacional condicione o direito ao crédito ao efetivo recolhimento do tributo devido em duas situações alternativas: i) quando o adquirente puder recolher separadamente o imposto incidente sobre a operação ou ii) quando o recolhimento ocorra com a própria liquidação financeira da operação.

A distinção entre as duas situações é singela. Em uma primeira leitura, parece que o constituinte reformador pretendeu conferir ao legislador complementar duas opções para um mesmo resultado. A primeira, com um caráter, digamos, mais simples e manual (pelo adquirente) e a segunda, com uma feição mais automatizada (pela instituição financeira), a depender de solução tecnológica apta ao desiderato. De todo modo, caberá ao legislador complementar o tratamento minudente do modelo a ser adotado.

A opção pelo sistema de split payment busca coibir fraudes tributárias e encerra uma discussão de anos travada no âmbito do ICMS (imposto de feição não cumulativa como o novo IBS) que acabou por ser tratada tanto em enunciado de súmula quanto em tema repetitivo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quais sejam a Súmula 509 e o Tema 272. Vejamos o teor dos entendimentos:

Súmula 509 – É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda.

Tema Repetitivo 272 – O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação.

Apesar da intenção uniformizadora, competência constitucional do STJ quando em disputa legislação federal, a redação dos enunciados ainda suscita severas controvérsias para a aplicação concreta, sobretudo no Estado de São Paulo. Isso porque há uma grande confusão sobre a questão cronológica que envolve a inidoneidade da nota fiscal assim declarada e a suposta boa-fé do contribuinte.

Releva notar que, em se tratando de prática de atos ilícitos na esfera tributária, a fiscalização sempre ocorre a posteriori. A nota fiscal não se apresenta inidônea ao sistema de controle quando emitida, demandando um conjunto de diligências posteriores para tal verificação. De igual modo, a regularidade cadastral da empresa é presumida, de modo que, mesmo fraudulenta, consegue emitir documentos fiscais até que o ilícito seja descortinado.

É por essa razão que a legislação de regência usualmente prevê a possibilidade de suspensão cautelar do registro ou da emissão de notas como meio para proteger a sociedade. Somente após a prática do ilícito é possível verificá-lo, de modo que a declaração de inidoneidade de determinada empresa sempre ocorrerá após o cometimento dos ilícitos.

O creditamento a partir de nota fiscal inidônea envolve, muitas das vezes, empresas criadas exclusivamente com o intuito de geração de créditos, sem o devido recolhimento do tributo devido na operação. Trata-se da constituição de empresas de fachada criadas com o intuito único de simular operações nunca ocorridas no mundo dos fatos para permitir a sonegação tributária. A fraude consiste, justamente, em dar regularidade documental a operação não realizada, o que se faz por meio dos registros contábeis, comprovantes de pagamentos simulados e congêneres.

É claro, contudo, que nem todas as notas fiscais declaradas inidôneas retratam operações simuladas. E nesse sentido que a jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que o contribuinte que comprova a ocorrência da operação comercial presume-se de boa-fé e tem direito ao crédito. Ou seja, antes de se analisar a cronologia da declaração de inidoneidade, se realizada antes ou depois da operação comercial, deve ser bem comprovada a ocorrência da operação, sem a qual o crédito não é legítimo.

Acontece, todavia, que os tribunais e juízos singulares nem sempre têm o devido cuidado com a ocorrência concreta da operação, algumas vezes atribuindo a condição de contribuinte de boa-fé em liminares e decisões exaurientes para permitir a utilização do crédito, com fundamento exclusivo na posterioridade da declaração de inidoneidade[1], outras vezes atribuindo o ônus da prova da inocorrência das operações ao fisco, na contramão da presunção de legitimidade dos atos administrativos[2].

Ou seja, verificando-se que a declaração de inidoneidade foi publicizada em momento posterior à suposta operação comercial, autoriza-se o crédito, independentemente da averiguação da realização da operação, em interpretação equivocada do entendimento firmado pelo STJ, o que estimula o contribuinte sonegador à prática do ilícito.

Um problema adicional nesse contexto é que a discussão, ao fim e ao cabo, demanda a análise do arcabouço fático-probatório, o que torna difícil o conhecimento de eventual recurso especial pelo STJ, em razão da Súmula nº 7 do tribunal, que dispõe que [a] pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.

Com a possibilidade de adoção do pagamento repartido (split payment), condicionando o crédito ao respectivo recolhimento do tributo, encerra-se a discussão sobre boa-fé do contribuinte ou sobre o momento correto para atribuição de efeitos à declaração de inidoneidade do suposto fornecedor, visto que apenas após o ingresso da quantia devida nos cofres públicos será possível a utilização do crédito. Certamente a adoção do sistema não acabará com a ocorrência de fraudes, mas demonstra a intenção do legislador em promover melhorias no sistema tributário.

O mau contribuinte não terá benefício na utilização de empresas interpostas e o fisco (e, portanto, a sociedade) não terá prejuízo em caso de abuso do direito, pois apenas com a liquidação da obrigação tributária será possível o creditamento. Logo, o instrumento, além de gerar um incremento arrecadatório para a consecução dos objetivos do Estado, fomentará um ambiente concorrencial mais leal, em benefício de toda a coletividade.

Como toda novidade, a implantação do modelo no Brasil tem suscitado dúvidas e críticas diversas, sobretudo quanto à possibilidade de interferência nociva ao fluxo de caixa das empresas pela demora no retorno dos créditos, mas, como já ressaltado, cabe ao legislador complementar, com esteio inclusive na experiência internacional, a adoção de um modelo que equacione todos os interesses em disputa e seja adequado ao ambiente brasileiro.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 17 jan. 2024.

ROCHA, Melina. Modelos internacionais de split payment. Palestra. Disponível em: https://ccif.com.br/modelos-internacionais-de-split-payment/. Acesso em: 17 jan. 2024.

TEIXEIRA, Alexandre Alkmim. To Split or not to Split: o Split Payment como Mecanismo de Recolhimento de IVA e seus Potenciais Impactos no Brasil. Revista Direito Tributário Atual nº 50. ano 40. p. 27-46. São Paulo: IBDT, 1º quadrimestre 2022.

[1] Por exemplo: APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO ANULATÓRIADE DÉBITO FISCAL. ICMS. OPERAÇÕES MERCANTIS REALIZADAS COM EMPRESA QUE POSTERIORMENTE FOI DECLARADA INIDÔNEA PELO FISCO. BOA-FÉ DA CONTRIBUINTE. Operações mercantis ocorridas antes da declaração de inidoneidade da empresa alienante. Documentação que indica a boa-fé da adquirente e a veracidade das operações, visto que, à época dos negócios, a situação da empresa alienante era regular. Não caracterizada a responsabilidade objetiva prevista no artigo 136 do CTN. A inidoneidade fiscal declarada após a operação mercantil não justifica a imposição de responsabilidade tributária ao adquirente. Inteligência da Súmula 509 do STJ. Anulado o auto de infração e tornado insubsistente o débito fiscal. Tese firmada pelo regime de recursos repetitivos do E. STJ (art. 543-C do CPC/73 correspondente ao art. 1.036 do CPC/2015) no julgamento do REsp1.148.444/MG, Rel. Min. LUIZ FUX. Ação julgada procedente em 1ºgrau. Sentença mantida, inclusive no tocante aos honorários sucumbenciais na forma sentenciada, acrescidos de honorários recursais ora fixados em 2,5% sobre o valor da causa, com o escalonamento do § 5º do art. 85 do CPC.RECURSOS OFICIAL E VOLUNTÁRIO DA FESP NÃO PROVIDOS, com observação. (Acórdão – Processo nº 1037803-49.2022.8.26.0577).

[2] Na verdade, a prova já foi produzida no processo administrativo que ensejou a declaração de inidoneidade.