O silêncio que grita: onde estão as juízas no Código de Processo Civil?

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Em 2025, o Código de Processo Civil de 2015 completa uma década desde sua promulgação. Esse marco temporal convida a múltiplas reflexões, sobre seus avanços, desafios e efeitos práticos. Neste contexto, propõe-se uma reflexão específica: a da inclusão. A análise se concentra sobre os símbolos presentes no texto legal, com atenção especial à representatividade e à pluralidade da composição do sistema de justiça.

Apesar de ter sido concebido sob a promessa de um processo mais democrático, cooperativo e voltado à efetividade da jurisdição, o CPC/15 já nasceu, em certos aspectos, ultrapassado: a ausência de linguagem inclusiva de gênero é um exemplo. 

Assim, a comemoração de seus 10 anos deve vir acompanhada do reconhecimento de suas omissões simbólicas e da urgência de superá-las.

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A discussão sobre linguagem e gênero ocupa lugar de destaque nas mais diversas esferas da sociedade. No campo jurídico, não é diferente. O Código de Processo Civil de 2015, celebrado como uma norma moderna e democrática, apresenta, no entanto, uma significativa limitação: a ausência de uma linguagem que reconheça expressamente a presença das mulheres em espaços de poder.

Ao longo do texto do Código de Processo Civil de 2015, o termo “juiz” é utilizado 546 vezes, enquanto a forma feminina “juíza” sequer é mencionada uma única vez. Essa escolha terminológica, longe de ser uma simples convenção gramatical, revela e reforça uma concepção do Direito e do sistema de justiça, na qual o sujeito de poder ainda é, simbolicamente, masculino.

A presença feminina no Judiciário brasileiro, segundo dados do CNJ, é de aproximadamente 40,47%[1] da magistratura nacional. No entanto, o reconhecimento simbólico de sua atuação continua restrito. O CPC/2015, ao invisibilizar a figura da juíza, reforça uma cultura jurídica que ainda trata o homem como padrão universal.

A linguagem é uma das ferramentas mais poderosas de estruturação social e, nesse contexto, a repetição do termo “juiz” atua como um marcador de exclusão. A ideia de que o masculino serve como gênero neutro tem efeitos práticos: gera distanciamento e sensação de não pertencimento, além de reforçar desigualdades.

Ao escrever “o juiz decidirá”, no §4º do artigo 64, o legislador naturaliza a imagem do julgador como homem. A ausência da forma “a juíza decidirá” não é uma simples omissão. A linguagem molda e reflete a forma como enxergamos o mundo. O uso exclusivo do masculino tende a reforçar estereótipos de que as funções públicas, políticas e profissionais são tradicionalmente masculinas, dificultando a representação simbólica e efetiva das mulheres nesses espaços.

Portanto, sustentar que o masculino é neutro é perpetuar uma lógica que invisibiliza parte significativa da sociedade. Promover uma linguagem inclusiva não se trata apenas de uma mudança estilística, mas de uma afirmação concreta de igualdade e reconhecimento da diversidade que compõe a nossa sociedade.

Além da ausência de magistradas, não há no Código de Processo Civil qualquer menção expressa às figuras da defensora ou da procuradora. O que se observa é a predominância do termo masculino como regra geral, o que aprofunda ainda mais a exclusão simbólica das mulheres nas profissões jurídicas. 

Para se ter uma ideia, a palavra “advogado” aparece 136 vezes ao longo do CPC, enquanto “advogada” é mencionada apenas uma única vez: no artigo 313, inciso IX, ao tratar da suspensão do processo em razão de parto ou adoção.

Esse dado revela, de forma clara, que a presença feminina é quase completamente ausente no texto legal, sendo lembrada apenas em situações específicas relacionadas à maternidade. Ou seja, quando se refere à atuação profissional da mulher, a lei a ignora; quando se refere aos seus papéis tradicionais de cuidado, aí sim a menciona.

É importante deixar claro que a crítica não se dirige à existência da previsão do artigo 313, IX, que assegura um direito relevante e necessário. O ponto, aqui, é outro: a constatação de que a única vez em que a advogada é mencionada no texto legal está ligada ao exercício da maternidade, e não ao pleno exercício da profissão.

Pode-se imaginar que incluir gêneros sobrecarregaria o texto legal. No entanto, a busca por uma linguagem inclusiva não precisa sacrificar a clareza ou a técnica jurídica. A compreensão do texto não seria prejudicada se, por exemplo, em vez de mencionar apenas o “juiz”, utilizássemos a forma “juiz ou juíza”. Prova disso é o parágrafo único do artigo 954 do Código de Processo Civil, que, ao prever a atuação de um(a) ou mais julgadores(as), utiliza a expressão “ao juiz ou aos juízes”.

Ainda que se argumente que o uso repetido de expressões como “juiz ou juíza” possa tornar o texto prolixo ou redundante, existem alternativas igualmente eficazes, elegantes e ainda mais inclusivas. Termos como “juízo” ou “autoridade judiciária”, por exemplo, oferecem soluções que preservam a precisão normativa sem restringir a referência aos gêneros binários.

Técnicas redacionais contemporâneas permitem contemplar de forma clara, objetiva e respeitosa a diversidade de identidades de gênero, reconhecendo que o sistema de justiça é composto por pessoas que não se identificam necessariamente como homens ou mulheres. A linguagem normativa deve acompanhar essa realidade plural, contribuindo para um Direito mais representativo, democrático e inclusivo.

Pode-se pensar na manutenção do estado de coisas já que a legislação brasileira sempre adotou o uso do gênero masculino como padrão, afinal, nem a Constituição Federal nem o Código Civil mencionam expressamente termos como “juíza” ou “magistrada”. 

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No entanto, a justificativa de que “sempre foi assim” não se sustenta: é preciso revisitar velhas formas de escrever e de fazer o Direito, promovendo equidade e inclusão. Como afirma Chimamanda Ngozi Adichie, “a cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se há algo na cultura que é injusto para algumas pessoas, então cabe a todos nós mudá-la”.

Já passou do tempo de reconhecer e garantir a presença das mulheres nos espaços de poder. Propõe-se, portanto, como forma de celebrar os 10 anos, uma revisão do Código de Processo Civil de 2015, com o objetivo de construir uma redação que valorize e represente a presença feminina na magistratura e em todas as esferas do sistema de justiça.