O Senado e os Moinhos de Vento

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Na noite desta quarta-feira (22), o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, após um intenso processo de debates e negociações. Essa emenda impõe limitações significativas na capacidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de emitir decisões monocráticas.

Conforme o texto da proposta, fica proibido aos ministros decidirem sozinhos em situações que incluem: suspensão de leis; interferência em atos presidenciais ou do Congresso; bloqueio de propostas legislativas; impacto em políticas públicas com efeitos amplos; ou criação de despesas para os poderes do Estado. Existe uma exceção durante o recesso forense, quando o(a) presidente do STF poderá tomar tais decisões individualmente, mas estas deverão ser revisadas pelo colegiado dentro de 30 dias após o retorno às atividades judiciárias. Além disso, estabelece-se um prazo máximo de seis meses para o julgamento de processos que envolvam a concessão de medidas cautelares em casos de inconstitucionalidade de leis.

A aprovação da PEC 8/2021 gerou um amplo debate entre os especialistas e profissionais ligados ao Supremo Tribunal Federal. Professores e juristas apresentam visões divergentes quanto à legitimidade do Legislativo de influenciar a dinâmica decisória do STF na revisão de atos dos demais poderes. Muitos argumentam que a PEC representa um avanço institucional necessário, aprimorando os processos do Supremo.

No entanto, outros veem a medida como uma resposta retaliatória do Senado ao STF. Este debate é ainda mais complexo considerando que, no fim de 2022, o próprio STF já havia abordado essa questão com a Emenda Regimental 58/2022. Enquanto alguns enxergam a PEC 8/2021 como um complemento a essa mudança regimental, outros questionam sua eficácia diante das normas já estabelecidas no Regimento Interno da Corte.

Por um longo tempo, o STF destacou-se pelo uso frequente de decisões monocráticas, que acabaram gerando tensões com outros poderes e reações na opinião pública. Essa tendência foi amplamente estudada no meio acadêmico (por exemplo, aqui e aqui).

Em resposta, a Emenda Regimental 58/2022, especificamente ao modificar as redações do art. 21, IV e V, §§ 5º a 8º, representou uma tentativa dos próprios Ministros do STF de atender a essas críticas. A emenda estipula que decisões cautelares tomadas individualmente por Ministros sejam prontamente submetidas a referendo, preferencialmente em sessões no Plenário Virtual. Isso visa à redução do número de decisões monocráticas, especialmente após a adoção do Plenário Virtual para todos os tipos de casos desde 2020.

Um aspecto fundamental que tem sido negligenciado no debate sobre as recentes tensões entre o STF e o Senado é a real necessidade da PEC 8/2021. Esta emenda visa restringir a emissão de decisões monocráticas pelos Ministros do STF, especialmente em casos que envolvem a suspensão de leis. Para entender melhor essa questão, analisamos os dados disponíveis no painel decisório do Supremo.

O gráfico abaixo mostra a quantidade anual de decisões colegiadas e monocráticas emitidas pelo STF de 2000 a 2023 para as colegiadas, e de 2007 a 2023 para as monocráticas. Vale ressaltar que, devido a limitações nos dados do STF, decisões individuais entre 2000 e 2007 não foram registradas. Nossa análise focou nas decisões relativas ao controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADPF, ADC, e ADO), que são o principal alvo da emenda. Foram consideradas apenas as decisões liminares e finais, excluindo aquelas interlocutórias que não resolvem o mérito dos casos. O gráfico destaca os números anuais sempre que as decisões ultrapassam a marca de cem por ano.

Como enfatizado pela literatura acadêmica, entre 2014 e 2020, observou-se um aumento significativo nas decisões individuais dos Ministros do STF. Especificamente, o número de decisões monocráticas em ADIs cresceu de 141 em 2009 para um pico de 445 em 2020. Em relação às ADPFs, o ápice foi de 164 decisões em 2021. Estes picos coincidiram com a pandemia da Covid-19, um período que exigiu do STF uma atuação intensa na resolução de conflitos federativos e na proteção de Direitos Fundamentais.

O período de maior incidência das monocráticas, especialmente em ADPF, também coincidiu com o mandato do Presidente Bolsonaro, que se valia de uma prática inconstitucional conhecida pela academia como “infralegalismo autoritário“. Essa estratégia era utilizada para contornar a falta de apoio no Congresso para a aprovação de projetos controversos entre políticos que, muito embora fizessem parte da base do governo, mas não se alinhavam completamente com seus aliados mais extremistas à direita. Simultaneamente, ao provocar a esperada censura judicial do STF, o presidente buscava polarizar o tribunal contra seus eleitores.

Por outro lado, até 2017, a quantidade de decisões colegiadas do tribunal permaneceu relativamente baixa. No entanto, a partir de 2018 e 2019, com a implementação do Plenário Virtual para todas as categorias processuais, houve um aumento expressivo nos acórdãos em ações de controle concentrado, particularmente nas ADIs, ultrapassando seiscentas decisões em 2020 e mantendo uma média de quatrocentas decisões nos anos subsequentes.

Os dados brutos não são suficientes para resolver o debate sobre a necessidade da PEC 8/2021, que visa limitar as decisões individuais dos Ministros do STF. O aspecto mais importante é a tendência mostrada pelas linhas do gráfico sobreposto. Esses dados indicam que a combinação da utilização do Plenário Virtual, impulsionada pelas regras da Emenda Regimental 58/2022, tem promovido uma mudança significativa na prática decisória do STF: as decisões monocráticas estão sendo substituídas por decisões colegiadas no âmbito do controle de constitucionalidade exaradas mediante o plenário virtual. Considerando que 2023 foi o primeiro ano em que as alterações regimentais de 2022 tiveram efeito pleno, a tendência aponta para um futuro em que as decisões individuais dos Ministros tornar-se-ão cada vez mais uma exceção.

Por que, então, o Senado aprovou uma emenda constitucional que provocou tantos atritos com o STF? Segundo alguns analistas, a iniciativa reflete uma estratégia política do presidente do Senado, visando alinhar-se ao grupo de apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ao adotar tal postura, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) abriria espaço para o retorno de Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) à presidência do Senado, ao mesmo tempo em que o colocaria na rota para concorrer ao Governo de Minas Gerais.

Além disso, a medida parece reforçar, ainda que artificialmente, a importância do Congresso Nacional, buscando um equilíbrio de poder com a Presidência da República, especialmente ao proibir decisões individuais que anulem atos dos Presidentes das duas Casas Legislativas. O argumento ganha relevo ao observarmos que a Emenda não leva em conta que, durante o exercício de revisão judicial das leis, o STF concentra sua maior atuação na legislação estadual que viola as competências da União, e não nas leis produzidas pelo Congresso Nacional. Além disso, é importante notar que o tribunal raramente interfere no trabalho legislativo como um todo, uma vez que as decisões julgadas procedentes, que não representam a maioria dos casos, suspendem apenas trechos específicos da lei contestada.

Reconhecemos que Emendas Constitucionais pontuais, como a que está em discussão, não são frequentes em nosso contexto constitucional. Talvez o exemplo mais recente remonte à alteração da idade máxima para aposentadoria de ministros do STF, visando evitar que a então presidente Dilma Rousseff (PT) pudesse indicar mais ministros alinhados à “lava-jato”. Além disso, a aprovação da emenda na Câmara dos Deputados não é garantida, uma vez que seu presidente, Arthur Lira (PP-AL), tem buscado uma maior aproximação com os ministros do STF. Recentemente, o tribunal rejeitou uma denúncia contra Lira por corrupção passiva.

Independentemente do destino da emenda, a qual ainda enfrentará uma prova de fogo na Câmara dos Deputados, podemos dizer que sua introdução na Constituição ocorreu tardiamente, levando em consideração os objetivos publicamente declarados pelos senadores.