No mês de junho, o Banco Central do Brasil (BCB) editou a Resolução BCB 324/2023 modificando aspectos da Circular 3.809/2016. Essa Circular trata dos instrumentos mitigadores no cálculo da parcela dos ativos ponderados peio risco referente às exposições ao risco de crédito sujeitas ao cálculo do requerimento de capital mediante abordagem padronizada, chamado de RWACPAD.
De maneira bastante simplificada, a regulamentação bancária (e, mais recentemente, de pagamentos), exige que instituições reguladas mantenham certo volume de ativos líquidos para dar conta dos riscos que afetam suas atividades. O montante varia de acordo com o tipo de risco assumido, de modo de ativos são “ponderados pelos riscos” (em inglês, risk weighted assets ou RWA). Em relação ao risco de crédito das instituições supervisionadas pelo BCB, o RWA específico é o RWA“C”, que, quando apurado conforme uma abordagem padronizada, disposta pelo próprio BCB, é identificado como RWACPAD.
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Assim sendo, a Circular 3.809/2016 serve para dizer quais ativos podem reduzir as exigências de liquidez normalmente consideradas no cálculo do RWACPAD. Dando conta disso, a norma reconhece os seguintes instrumentos como aptos a mitigar risco de crédito para fins de cálculo do RWACPAD: (i) colateral financeiro; (ii) acordo bilateral para compensação e liquidação de obrigações; (iii) garantia fidejussória; e (iv) derivativo de crédito.
Uma das alterações trazidas pela nova norma e que entrou em vigor a partir de 10 de julho de 2023, na forma da adição do inciso VI ao art. 18, foi a inclusão da garantia fidejussória provida por seguradora no rol dos instrumentos mitigadores de risco de crédito:
Art. 18. São reconhecidos como instrumento mitigador do risco de crédito a garantia fidejussória ou o derivativo de crédito providos por: (…)
VI – seguradoras sujeitas a requerimentos prudenciais consistentes com padrões internacionais.
A inclusão dessa disposição na Circular levou a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) a celebrar que seguros de crédito teriam passado a ser vistos como instrumentos mitigadores do cálculo da parcela do RWACPAD. Se for essa a interpretação correta, o efeito da utilização do seguro de crédito seria, na forma do art. 17 da Circular 3.809/2016, a consideração do risco do segurador em vez do risco do segurado (na forma do “Fator de Ponderação de Risc” ou “FPR”) no cálculo do RWACPAD.
No entanto, entende-se já que seria salutar avançar um pouco no incremento à Circular, a fim de conferir maior segurança jurídica à utilização do seguro de crédito. Chama-se atenção especialmente para o emprego da categoria de “garantia fidejussória” no texto da norma.
Tradicionalmente na doutrina, as garantias fidejussórias compreendem basicamente a fiança e o aval. Como traço distintivo desse tipo de garantia, há o ingresso de um terceiro como coobrigado em uma relação jurídica da qual ele não participa.
Trata-se de algo diverso do caso de um seguro em que a ocorrência de determinado sinistro leva à obrigação de indenização do segurado por parte do segurador. Diferentemente da garantia fidejussória, o seguro representa uma relação jurídica própria, entre segurador e segurado, que pode ou não ser subjacente a uma outra obrigação do segurado.
O BCB parece entender ter resolvido a questão ao estabelecer uma definição mais abrangente de garantia fidejussória para a Circular 3.809/2016:
Art. 21. São consideradas garantias fidejussórias o aval, a fiança ou qualquer outra modalidade de garantia pessoal, e a coobrigação em cessão de créditos.
Art. 22. As garantias fidejussórias devem assegurar o direito de recebimento tempestivo de pagamentos devidos pelo garantidor independentemente da adoção de medidas legais adicionais.
Mesmo com isso, seria necessário certo grau de interpretação normativa para concluir-se pela inclusão dos seguros nessa categoria, o que pode levar os agentes de mercado a hesitarem diante da opção de utilizar um seguro no lugar de alguma outra garantia para mitigar o risco de uma operação em que uma das partes seja instituição autorizada pelo BCB.
Vale notar que o próprio BCB já ofereceu um caminho que pode ser útil para dar conta dessa questão.
Na exposição de motivos da Resolução BCB 324/2023, a inclusão do inciso VI no art. 18 é justificada nas seguintes bases:
“Com a proposta, passam a ser reconhecidos as garantias fidejussórias e os derivativos de crédito emitidos por Contraparte Central Qualificada (QCCP) e por seguradoras, alinhando a norma de mitigação com Basileia III (novos incisos V e VI do art. 18)”.
No âmbito de Basileia III, a regulamentação sobre mitigação de risco de crédito decorre do capítulo “CRE22 Standardised approach: credit risk mitigation”, do quadro de Basileia. A versão aqui utilizada é aquela em vigor a partir de 1º de janeiro de 2023.
Nesse capítulo são de particular importância para o assunto aqui tratado as disposições entre os itens 22.70 e 22.73, que contêm os requisitos operacionais para garantias e derivados de crédito, bem como aquelas que compõem o item 22.76, que lista as entidades garantidoras elegíveis à mitigação de risco.
Com efeito, a Resolução BCB 324/2023 parece ter observado o quadro de Basileia, sendo que as seguradoras são dispostas como entidades garantidoras elegíveis na nota 11, referente ao item 22.76.
O que chama atenção é que todos esses itens estão abarcados em uma mesma seção do capítulo, denominada “garantias e derivativos de crédito”, enquanto o BCB optou por dar o título de “Das garantias fidejussórias e dos derivativos de crédito” ao Capítulo da Circular 3.809/2016 em que essas disposições foram trazidas para a regulamentação brasileira.
Dessa forma, para evitar eventuais incertezas por conta da diferença entre as características de um seguro e de uma garantia fidejussória, o BCB faria bem se, em vez de alargar o conceito de garantias fidejussórias, adotasse a nomenclatura utilizada no quadro da Basileia e passasse a definir na Circular quais as “garantias” que, ao lado dos derivativos de crédito, seriam aptas a mitigar risco de crédito. Aí estariam as garantias fidejussórias, os seguros prestados por seguradoras sujeitas a requerimentos prudenciais consistentes com padrões internacionais e outras modalidades de garantias que o regulador pretenda considerar.
Trata-se de alteração relativamente simples, mas que tem potencial para reduzir o risco de que os agentes de mercado tenham reservas quanto ao emprego de seguros de crédito em suas operações e dá mais flexibilidade ao BCB para inclusões de outros tipos de garantia sob a disciplina da Circular 3.809/2016.