Desde 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) recebe ADPFs questionando ações e omissões concretas de instituições públicas, responsáveis pela grave violação de direitos fundamentais[1]. Nos casos mais graves, o Tribunal confere tratamento diferenciação à ação, originando o chamado processo estrutural. Se, por um lado, esses processos podem funcionar como um instrumento importante para a defesa de direitos fundamentais de grupos vulneráveis, por outro, o acúmulo excessivo dessas demandas na jurisdição constitucional pode minar o seu capital político e expor o STF a críticas sobre violação à separação de poderes, ilegitimidade democrática e falta de capacidade institucional para interferir em políticas públicas.
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Processos estruturais e sua chegada ao STF
Os processos estruturais são caracterizados por três elementos: seu objeto; seu objetivo e sua técnica de condução.
Objeto: tratam de um estado de coisas que causa uma grave, sistemática e crônica violação de direitos fundamentais de uma coletividade. Objetivo: por causa do seu objeto, o objetivo do processo estrutural é transformar gradualmente o estado de coisas em desconformidade com a Constituição, permitindo uma proteção concreta e adequada aos direitos violados. Técnica de condução: apresentado o plano de ação e sendo homologado pelo Judiciário, inicia-se a fase da implementação. Para garantir o efetivo cumprimento do que foi apresentado, o juiz retém a jurisdição sobre o caso, fomenta o diálogo interinstitucional entre os atores e monitora a transformação da realidade inconstitucional por determinado período. Nessa fase, pode ser necessário tomar decisões complementares, que possibilitem o ajuste do plano de ação e seu efetivo cumprimento.
No Brasil, o processo estrutural no STF tem sido utilizado para tratar de diferentes assuntos, especialmente na proteção de grupos vulneráveis[2]. Podem ser mencionados como principais exemplos: (i) a ADPF 347, que trata do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro; (ii) a ADPF 635, que trata da alta letalidade policial no Rio de Janeiro, especialmente em operações realizadas em favelas; (iii) a ADPF 709, que tratou da proteção das comunidades indígenas durante a pandemia de Covid-19 e buscou a reestruturação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS)[3]; (iv) a ADPF 742, que tratou do direito à saúde das comunidades quilombolas na pandemia de Covid-19; (v) as ADPFs 743, 746 e 857, que tratam de falhas estruturais nas políticas de combate às queimadas na Amazônia e no Pantanal; (vi) a ADPF 760, que tem como objeto falhas estruturais na política de combate ao desmatamento da Amazônia e busca fortalecer a Funai, o Ibama e o ICMBio; (vii) a ADPF 854, que trata do orçamento secreto; (viii) a ADPF 991, que trata da proteção territorial aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (PIIRC); e (ix) a ADPF 1242, na qual se busca combater a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A multiplicação das ADPFs estruturais em 2025
Em 2025, o ajuizamento de ADPFs com pedidos estruturais ganhou uma proporção inédita. Diversos legitimados passaram a pleitear a declaração de estado de coisas inconstitucional (ECI) em áreas das mais variadas[4].
A ADPF 1207 questionou o art. 128 do Código Penal, alegando que a ausência de regulamentação adequada sobre aborto resultava em violação massiva de direitos fundamentais ligados à saúde, dignidade e liberdade científica. Na ADPF 1224, discutiu-se o colapso administrativo do INSS, com pedidos de reconhecimento de um ECI previdenciário diante das filas, atrasos e falhas no atendimento. A ação, inclusive, recebeu caráter estrutural mediante despacho do Ministro Dias Toffoli, relator da ação, sem prévia manifestação do colegiado. As ADPFs 1234 e 1235 denunciaram a precariedade da rede hospitalar do Distrito Federal, sob o fundamento de insuficiência estrutural do sistema configuraria ECI em saúde pública. A ADPF 1242 tratou da violência contra mulheres, destacando a ausência de políticas eficazes de prevenção e proteção, o que levou o Supremo a, pela primeira vez desde 2015, reconhecer novamente um estado de coisas inconstitucional.
Em seguida, recentes arguições ampliaram ainda mais a possibilidade de reconhecimento do estado de coisas inconstitucional: a ADPF 1263 questionou a situação do sistema rodoviário nacional; a ADPF 1264 alegou perfilamento racial em abordagens policiais; a ADPF 1265 apontou a exclusão de minorias étnicas no acesso a cargos públicos; e a ADPF 1266 discutiu práticas discriminatórias na concessão de bolsas de estudo.
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Esse conjunto de ações revela que os legitimados têm percebido no Supremo uma crescente disposição para acolher pleitos de natureza estrutural. Ao mesmo tempo, a invocação expressa do “estado de coisas inconstitucional” tem sido utilizada como estratégia argumentativa para conferir maior densidade às teses apresentadas. Parte-se da expectativa de que a mera declaração de ECI aproximaria a causa da procedência integral, sem a devida ponderação sobre o alcance político – interno e internacional – de afirmar a falência estrutural do Estado brasileiro em assegurar direitos fundamentais, tampouco sobre o impacto institucional dessa opção para o Judiciário e o Executivo.
A importância de filtros jurisprudenciais e institucionais
A multiplicação de ADPFs estruturais pode representar uma oportunidade ímpar para o STF sistematizar quando e como atribuir caráter estrutural a um processo específico. Para isso, dois filtros parecem essenciais.
Primeiro, o filtro de estruturalidade. É essencial que o Tribunal tenha uma jurisprudência clara sobre quando uma ação deve ser conduzida de forma estrutural. Nesse contexto, é possível traçar um paralelo com o sistema recursal. Assim como o recurso extraordinário e o recurso especial passaram a exigir filtros de admissibilidade – a repercussão geral no STF e a relevância da questão federal no STJ-, também o processo estrutural deveria submeter-se a um filtro de estruturalidade, uma análise prévia que identifique, de forma objetiva, os casos que realmente justificam o emprego dessa técnica processual[5]. Esse filtro serviria para resguardar a coerência do instituto e preservar a credibilidade do modelo estrutural, evitando a sua banalização.
Na linha do que já se delineia na doutrina[6], podem ser apontados cinco critérios mínimos para o reconhecimento judicial da estruturalidade: (i) a vulnerabilidade do grupo afetado, com risco real e persistente de violação a direitos fundamentais em larga escala; (ii) a crônica inércia do Poder Público, evidenciada por histórico de descumprimento e ausência de coordenação institucional; (iii) a subsidiariedade judicial, verificada apenas após tentativas infrutíferas de solução pelas instâncias políticas e técnicas; (iv) a delimitação adequada do problema, com recorte material e territorial manejável, metas verificáveis e indicadores de monitoramento; e (v) a amplitude nacional ou intersetorial do litígio, de modo que poucas instituições centrais possam promover o ajuste sistêmico necessário.
Importante ressaltar que não se está aqui diante de um binômio: se tornar um processo estrutural ou ser uma ação improcedente. O filtro jurisprudencial deve contribuir apenas para identificar quais ações devem ser priorizadas para serem conduzidas como estruturais. Quando não for o caso, podem ser conduzidas conforme o procedimento tradicional do controle concentrado.
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O segundo filtro é de natureza institucional. Diante da complexidade dos temas tratados, do capital político envolvido e do tempo investido em cada demanda, é fundamental que a decisão que atribui caráter estrutural ao processo seja colegiada ou, ao menos, submetida a referendo do órgão competente. Essa medida reforça a legitimidade da decisão e distribui entre os ministros a responsabilidade pelo acompanhamento de casos que, por sua natureza, impactam múltiplas políticas públicas e requerem atuação coordenada do Estado. A atual proposta de modificação do regimento interno do STF já traz proposta relevante no sentido da necessidade da colegialidade em processos estruturais:
Art. 229-B. O processo poderá ser conduzido de forma estrutural, caso trate de grave violação de direitos fundamentais, cuja resolução exija modificações em instituições públicas ou privadas e a implementação gradual de medidas complexas.
- 1º A decisão monocrática que atribuir caráter estrutural ao processo deverá ser submetida a referendo do órgão colegiado competente.
[…]
Com isso, o debate sobre a conveniência de atribuir o caráter estrutural ao processo será melhor discutido e a decisão terá maior legitimidade.
Conclusão
O crescimento expressivo de arguições com pedidos dessa natureza revela o risco de banalização do instituto. Bem por isso, o reconhecimento do caráter estrutural do processo deve observar critérios bem delimitados, como os cinco apontados ao longo deste artigo. A instituição de um filtro de estruturalidade com base nesses critérios, inspirado na lógica de admissibilidade recursal, permitiria identificar previamente as ações que realmente justificam esse regime excepcional, evitando o uso inflacionado da técnica. Além disso, a necessidade de uma decisão colegiada para atribuir caráter estrutural ao processo é um filtro institucional importante.
A banalização do processo estrutural compromete sua legitimidade e dilui a autoridade da jurisdição constitucional. Se toda falha estatal for tratada como estrutural, o Supremo corre o risco de se afastar de sua função de Corte Constitucional para assumir o papel de gestor permanente de políticas públicas. Conservar a excepcionalidade desse modelo é garantir que o processo estrutural permaneça como instrumento de reconstrução institucional, utilizado apenas quando a desconformidade constitucional justifique, de fato, uma intervenção judicial em dimensão estruturante.
[1] Cf. CASIMIRO, Matheus. Processo estrutural democrático: participação, publicidade e justificação. Belo Horizonte: Fórum, 2024.
[2] VIÉGAS, F. Processos estruturais e a proteção dos direitos fundamentais: uma análise comparativa nas cortes constitucionais americanas. Revista da Advocacia Pública Federal, v. 8, n. 1, p. 273-289, 18 dez. 2024.
[3] Para um melhor entendimento sobre o encerramento da ADPF 709, ler: CASIMIRO, Matheus; MELLO, Patrícia Perrone Campos. O que a conclusão da ADPF 709 ensina sobre processos estruturais: STF mostra que há como conciliar enfrentamento de violações a direitos fundamentais com princípio da separação dos poderes. JOTA, Brasília, 3 out. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-a-conclusao-da-adpf-709-ensina-sobre-processos-estruturais. Acesso em: 9 out. 2025; e VIÉGAS, Felipe. O encerramento da primeira ADPF estrutural pelo STF: ADPF 709 reformulou política de saúde indígena no país a partir da técnica decisória dos processos estruturais. JOTA, Brasília, 7 out. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-encerramento-da-primeira-adpf-estrutural-pelo-stf. Acesso em: 9 out. 2025.
[4] Sobre o conceito, a aplicação e os limites do estado de coisas inconstitucional, conferir em: VIÉGAS, Felipe. Reformas estruturais e o estado de coisas inconstitucional. São Paulo: Dialética, 2022.
[5] Sobre o tema, o Projeto de Lei nº 3/2025, que propõe regulamentar o procedimento dos processos estruturais, prevê em seu art. 6º que o caráter estrutural do litígio poderá ser reconhecido tanto de forma consensual quanto por decisão judicial. O § 4º do mesmo artigo estabelece critérios objetivos para essa definição, determinando que o juiz deverá considerar, entre outros elementos, a abrangência social do conflito, a natureza dos direitos envolvidos, as informações técnicas disponíveis, a potencial efetividade da solução proposta e seus limites e dificuldades. A previsão busca conferir racionalidade e segurança jurídica à identificação da estruturalidade do processo, evitando que a adoção desse regime se dê de forma automática ou dissociada de seus pressupostos materiais. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9889342&ts=1753304264858&rendition_principal=S&disposition=inline. Acesso em: 9 out. 2025.
[6] Cf. CASIMIRO, Matheus; FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha. Decidindo quanto intervir: critérios para identificar ações estruturais prioritárias. REI – Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 661–688, 2024; VITORELLI, Edilson. Uma pauta de atuação estrutural do Supremo Tribunal Federal: por que, quando e como?. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, Distrito Federal, Brasil, v. 4, n. 1, p. 253–297, 2024.