A proposta de reforma da Lei 9.784/99, em trâmite no Congresso Nacional por meio do PL 2481/2022, pretende modernizar o processo administrativo e conferir maior celeridade à atuação estatal, mas a possibilidade de que o silêncio da administração gere efeitos jurídicos automáticos suscita importantes dúvidas sobre os limites da autonomia regulatória, o que se pretende analisar neste estudo.
Em março de 2022, foi instalada, no Senado, a Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que modernizem o processo administrativo e tributário (CJADMTR), que elaborou o anteprojeto de reforma da Lei 9.784/99, que culminou no PL 2481.
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A referida comissão estabeleceu temas centrais da temática relacionada aos trabalhos da subcomissão de processo administrativo, que se transformaram em diretrizes a serem observadas nas reuniões e debates do grupo, destacando-se, dentre elas, “a estipulação de que ordinariamente o silêncio da Administração produz o efeito translativo e que apenas excepcionalmente produzirá o efeito negativo ou positivo” [1].
De acordo com o relatório conclusivo emitido pela Comissão Temporária que criou o anteprojeto, o anteprojeto deu preferência ao efeito translativo, que traduz a ideia de que, diante da inércia da autoridade competente para decidir no prazo previsto legalmente, a competência será transferida à autoridade superior.
O efeito translativo vem sendo defendido [2] como uma forma de resposta preventiva à omissão estatal formal, promovendo a continuidade da marcha processual e mitigando os riscos do chamado silêncio inconstitucional. Em vez de presumir o mérito da decisão (como fazem os efeitos positivo e negativo), o translativo assegura que o Estado se manifeste, preservando a racionalidade decisória e o controle administrativo.
A regra do efeito translativo foi elencada na proposta de inserção do art. 49-H à Lei 9.784/99, cuja redação de seu caput prevê a transferência de competência decisória no caso de silêncio administrativo “sempre que a lei não dispuser de forma diversa”.
Não obstante, a Comissão Temporária destacou, no relatório final dos trabalhos, que o anteprojeto também elencou hipóteses de silêncio negativo e de silêncio positivo.
O parágrafo quarto do pretenso art. 49-H, por exemplo, confere às administrações a faculdade de atribuir, por ato normativo ou contrato, efeitos de aceitação tácita nos casos de omissão ou recusa de decidir, privilegiando, assim, a autonomia regulatória da Administração, caso não haja vedação legal específica à adoção do silêncio positivo.
Já o parágrafo quinto do mesmo dispositivo, proposto no anteprojeto e replicado na redação original do PL 2841 elencava hipóteses em que o silêncio administrativo teria efeitos de indeferimento do pedido (silêncio negativo): a) a transferência de poderes relativos ao domínio ou serviço público para o requerente ou a terceiros; b) que envolvam o exercício de atividades lesivas ao meio ambiente, conforme estabelecido pelo respectivo órgão ambiental competente; c) responsabilidade patrimonial e compromisso financeiro das Administrações Públicas.
A Comissão parece ter buscado, com o anteprojeto, evitar consequências gravosas e muito caras ao interesse público, determinando situações nas quais o silêncio já equivaleria ao indeferimento do pedido.
Não obstante, em 12 de junho de 2024, foi aprovada a Emenda Parlamentar 3, pela Comissão Temporária para exame de projetos de reforma dos processos administrativo e tributário nacional, que suprimiu a previsão de silêncio negativo retro destacada [3].
De acordo com o parecer do relator da emenda, senador Efraim Filho (União-PB), a disposição iria de encontro ao dever de motivação, pressuposto de validade dos atos administrativos.
O relator justificou em seu parecer que a previsão de dever de motivação explícita no julgamento de eventual recurso contra o indeferimento tácito não supriria a necessária motivação do ato administrativo em caso de não interposição do recurso.
Destacou o senador, ainda, que a ausência de fundamentação prejudicaria o próprio exercício do direito ao recurso, na medida em que o administrado não teria contra o que se insurgir, sendo obrigado a reiterar os fatos e argumentos trazidos na inicial, o que se traduziria na mesma regra do efeito translativo.
São compreensíveis as razões elencadas pelo relator da emenda, que, aliás, estão alinhadas às vozes que vêm rechaçando o silêncio negativo em prol do dever de motivar inerente à administração democrática [4].
Cabe a indagação, no entanto, sobre o potencial lesivo da simples supressão da disposição constante da redação original do PL, sem atenção do debate legislativo sobre o silêncio positivo previsto no parágrafo quarto do pretenso artigo 49-H.
Referido dispositivo confere às administrações, em todas as esferas federativas, diante do caráter nacional que se pretende atribuir à Lei 9.784/99 pelo PL (art. 1º), a possibilidade de regulamentar a viabilidade do silêncio positivo mesmo diante das consequências que haviam sido levantadas pela Comissão de elaboração do anteprojeto como justificativa para o silêncio negativo.
Deve-se ponderar que o instituto do silêncio positivo pode apresentar algumas desvantagens. Há, por exemplo, risco de perda da qualidade decisória, a partir da intensificação de uso de decisões pré-formatadas, ou mesmo de que órgãos públicos comecem a regulamentar prazos muito extensos para evitar o silêncio positivo, caminhando para sentido oposto ao propósito de agilidade justificador do silêncio [5].
Há relevância não apenas dessas questões, relacionadas a preocupações técnicas, mas também de outros temas mais sensíveis, como a indevida captação das administrações por interesses privados escusos, principalmente diante da dificuldade de controle inerente à capilarização das administrações públicas no extenso território do Estado brasileiro.
Essas ameaças induzem à razoável inferência de que os efeitos automáticos do deferimento tácito devem ser utilizados com parcimônia, limitando-se a contextos em que a previsibilidade e a agilidade administrativa não comprometam outros interesses públicos sensíveis.
Não se está a defender que as hipóteses consequenciais lesivas contempladas pela comissão elaboradora do anteprojeto de lei sejam as mais adequadas, muito menos a criticar a supressão das hipóteses de indeferimento tácito previstas na redação original do projeto de lei, a qual é justificável, como já ressaltado.
Contudo, é necessária a reflexão da comunidade jurídica sobre a possibilidade que se pretende conferir às administrações públicas, a partir da redação atual do PL 2481, especialmente para entender se não seria prudente que o legislador federal, desde logo, fixasse na norma geral de caráter nacional hipóteses justificadas em que o silêncio positivo fosse, a rigor, vedado.
A ausência de critérios legais mínimos para o silêncio positivo pode comprometer valores constitucionais sensíveis e os próprios objetivos que justificam o instituto jurídico, debate sobre o qual deveria se aprofundar o legislativo na tramitação da proposta de reforma do processo administrativo.
[1] BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que modernizem o processo administrativo e tributário – CJADMTR. Relatório Final. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2507/;
[2] MODESTO, Paulo. Silêncio Administrativo Positivo, Negativo e Translativo: a omissão estatal formal em tempos de crise. Disponível em: https://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/silencio-administrativo-positivo-negativo-e-translativo–a-omissao-estatal-formal-em-tempos-de-crise-;
[3] Informação disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154735;
[4] Silveira, Mateus Camilo Ribeiro da. O silêncio administrativo, suas possíveis consequências jurídicas e a revisão dos seus efeitos pela administração pública. Revista CEJ, Brasília, Ano XX, n. 68, p. 68-77, jan./abr. 2016. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/items/d6783a58-c534-45ac-971e-1a9352a11887;
[5] Marrara, Thiago. Administração que cala consente? Dever de decidir, silêncio administrativo e aprovação tácita. Revista De Direito Administrativo, 280(2), 227–264. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.12660/rda.v280.2021.84496.