Nove entre dez manuais de Direito Administrativo enunciam, no capítulo dos princípios reitores da disciplina, o da indisponibilidade do interesse público. Se administrar era “aplicar a lei de ofício”, não havia mesmo como admitir soluções concertadas entre a Administração e o particular. O interesse público concreto deveria corresponder, integralmente, ao interesse público abstrato concebido pelo legislador. A disponibilidade lembrava ainda a livre disposição sobre bens privados – e seria preciso erigir um regime publicístico em bases republicanas. Assim, consolidou-se entre nós a noção da intransacionabilidade dos interesses processuais e materiais da Administração.
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Aos poucos essa versão rígida e idealizada da função administrativa perdeu força. De início, a celebração de acordos pela Administração foi admitida quando prevista expressamente pela lei em situações típicas. No campo das desapropriações, nunca se questionou a validade da desapropriação amigável (art. 10 do DL 3.365/1941) e da transação judicial (art. 22 do DL). Na área ambiental, o Decreto 94.764/1987 previa a possibilidade de termo de compromisso com redução de 90% da multa aplicada.
O termo de ajustamento de conduta foi expressamente previsto na Lei da Ação Civil Pública, em 1990, como uma espécie de solução consensual adotável no âmbito dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Mas foi apenas em 2002 que o STF declarou a juridicidade de transações celebradas pelo Poder Público, quando o acordo pudesse ser justificado como a melhor maneira de satisfazer ao próprio interesse público (RE 253.885, rel. min. Ellen Gracie).
De lá para cá, a consensualidade foi adotada como uma das diretrizes do CPC de 2015 (inclusive para o Estado), passando pela admissão expressa da mediação (Lei 13.105 e 13.140/2015) e da arbitragem envolvendo a Administração (Lei 13.129/2015), até a previsão de acordos de leniência (Lei 12.846/2013) e de não persecução civil (Lei 13.964/2019).
Finalmente, o art. 26 da LINDB (Lei 13.655/2018) é uma cláusula geral da consensualidade administrativa: trata-se de um permissivo legal genérico para a celebração de acordos pelo Poder Público, que torna desnecessária a previsão de negócios jurídicos típicos. É como se uma solução discricionária consensual se tornasse admissível em lugar do ato plenamente vinculado. Essa norma também afasta a necessidade de autorizações legais específicas para acordos, desde que eles sejam devidamente justificados por sua vantajosidade econômica e social.
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Sabe-se que seguimos a falar na inalienabilidade dos bens públicos, quando queremos, na verdade, explicar que estão sujeitos a uma alienabilidade condicionada. Pois também aqui deveríamos atualizar o vocabulário da disciplina para a disponibilidade condicionada de interesses públicos: administrar pode exigir dispor de alguns interesses da sociedade em proveito de outros, com a devida motivação, dentro de limites e condições admitidos pelo ordenamento jurídico.