O que o Direito Internacional Humanitário diz sobre a guerra entre Israel e o Hamas?

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Para responder a essa pergunta, é essencial esclarecer dois pontos fundamentais. Primeiramente, é crucial compreender que o Direito Internacional Humanitário (DIH) se aplica especificamente ao direito durante situações de guerra. Conhecido como “jus in bello”, o DIH abrange o conjunto de normas que se aplica tanto a conflitos armados internacionais quanto conflitos não internacionais. Em segundo lugar, é fundamental destacar que o Direito Internacional Humanitário não tem o papel de julgar a legitimidade do início de um conflito. Pelo contrário, sua principal função reside na regulamentação do tratamento humano das partes envolvidas após o início do conflito.

Cabe ressaltar que os limites em guerras já eram aplicados muito antes da codificação do Direito Internacional Humanitário. Os Estados costumavam adotar uma série de práticas que visavam proporcionar tratamento recíproco aos feridos em combates e aos prisioneiros, entre outros exemplos. No entanto, o marco do Direito Internacional Moderno foi estabelecido com a criação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em 1863, quando Henry Dunant testemunhou os horrores da guerra e fez um apelo humanitário para a formação de um grupo neutro e independente em tempos de conflito armado.

O Direito Internacional Humanitário Moderno é moldado por tratados amplamente reconhecidos globalmente[1].  As quatro Convenções de Genebra de 1949, juntamente com seus Protocolos correspondentes, tratam da proteção humanitária das vítimas de guerra, dos prisioneiros de guerra e dos civis. Além disso, as Convenções da Haia estabelecem limites à conduta na guerra, impondo direitos e deveres durante os conflitos, como a restrição da utilização de armas que causem sofrimento desnecessário ou que não façam distinção entre combatentes e não combatentes. Por outro lado, os chamados Direitos de Nova York consistem em inúmeras resoluções da ONU que abordam o dever de proteção dos direitos humanos em períodos de conflitos armados.

Quando avaliamos o ataque terrorista[2] perpetrado pelo grupo Hamas e as ações do Estado de Israel à luz do Direito Internacional Humanitário, as respostas se revelam no contexto do Direito Internacional Público, por meio do Estatuto de Roma[3]. Este tratado define como crimes de guerra as violações das Convenções de Genebra, como manter reféns, praticar tortura, infligir tratamento desumano e a prática de ataques deliberados contra civis não envolvidos diretamente nas hostilidades.[4]  No que diz respeito a crimes contra a humanidade, as definições incluem atos como homicídio, extermínio e desaparecimento forçado de pessoas, quando cometidos no contexto de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil, desde que haja conhecimento desse ataque.[5] Dessa forma, os indivíduos que violarem o Estatuto de Roma poderão ser sujeitos a julgamento no Tribunal Penal Internacional.

O grupo Hamas é a autoridade de governo de facto sobre a Faixa de Gaza, a qual faz parte do território do Estado da Palestina. O Estado da Palestina engloba os territórios da Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, tendo ratificado as quatro Convenções de Genebra e seus Protocolos correspondentes. Neste sentido, a Palestina está obrigada a cumprir o Direito Internacional Humanitário, uma vez que as ações do grupo Hamas violam o DIH. Isso ocorre devido à prática de massacres contra a população civil, assim como a execução de prisioneiros ou pessoas que estão sob seu controle, e a manutenção de reféns, configuram crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

De acordo com o Direito Internacional[6], Israel tem o direito legítimo de autodefesa, contudo, deve fazê-lo respeitando os limites estabelecidos pelo DIH, em especial o Princípio da Humanidade, que visa preservar a dignidade humana durante o conflito, e o Princípio de Distinção entre combatentes e civis. Estes limites estão claramente delineados nos tratados mencionados, que proíbem ataques a civis, jornalistas, trabalhadores humanitários, médicos, diplomatas, escolas, hospitais, igrejas , entre outros. Ademais, o DIH impõe a obrigação de proteger grupos mais vulneráveis, como mulheres e crianças[7], proibindo ações que ameacem a sobrevivência da população afetada, como a restrição do acesso à água, alimentos, eletricidade, combustíveis e medicamentos. Portanto, o DIH enfatiza a necessidade de permitir o acesso à ajuda humanitária, com a pré-condição fundamental de permitir a entrada de itens essenciais para a sobrevivência.

Nesse contexto, a sociedade internacional tem a obrigação de não esquecer os limites da guerra a fim de evitar a perpetuação da “banalidade do mal”[8]. Os Estados, por sua vez, tem a responsabilidade de respeitar o Princípio da Humanidade. Além disso, devem cumprir o Princípio da Responsabilidade dos Estados, o qual inclui a responsabilidade individual de “pacta sunt servanda” (cumprir os tratados aos quais estão vinculados) e a responsabilidade coletiva de todos os Estados em assegurar o cumprimento dos tratados por parte de outros Estados.

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[1] As quatro Convenções de Genebra foram ratificadas por 196 Estados, o que demonstra sua ampla aceitação.

[2] Este artigo classifica o ato do Hamas como um ato terrorista com base na lista de terroristas definida pela União Europeia. Contudo, a autora recorda que o termo terrorismo não tem classificação única e definido pelo Direito Internacional, a respeito Yesa Ormond, especialista em terrorismo nos ensina que “’terrorismo’ é um termo escorregadio, polissêmico e que escapa a fechamentos. ‘Terrorismo’ é considerado, por alguns, um fenômeno de violência subnacional; por outros, um ato de resistência. Para alguns, possui um pano de fundo religioso; para outros, é algo irracional; para outros, porém, parte Estados e suas autoridades. ‘Terrorismo’ é um termo político e carregado de emoções. Não é puramente descritivo ou neutro. De um lado, ‘terrorismo’ é oferecido como um conceito organizador – ações contra ‘terrorismo’ tomam lugar em nome da ‘segurança nacional’ – mas, de outro, o apelo a ele lança mão de juízos morais – que distinguem o ‘certo’ e o ‘errado’, o ‘bem” e o ‘mal’. Como pesquisadora, e frente a essa polissemia, posso somente dizer o que o ‘terrorismo’ não é: ele não é um conceito estático, apolítico, facilmente captável e exclusivo do século XXI.“  Entrevista realizada com Yesa Ormond, doutoranda em Relações Internacionais, PUC-Rio, especialista em terrorismo.

[3] O Estatuto de Roma é o tratado que criou o Tribunal Penal Internacional, que tem competência para julgar somente a indivíduos por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, crimes de agressão e crimes de genocídio.

[4] Artigo 7 do Estatuto de Roma.

[5] Artigo 8 do Estatuto de Roma.

[6] É o chamado “jus ad bellum”, que é o “direito da guerra”, de recorrer ao uso da força. Na sociedade moderna a Guerra é proibida pela Carta da Organização das Nações Unidas, no seu artigo 2.4 e 2.7: “4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas. 7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII.” São permitidos somente nos casos previstos no Capítulo II da Carta da ONU, como legítima defesa contra um ataque armado ou quando autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU.

[7] O número de óbitos de mulheres e crianças nesta guerra já representa mais da metade. Informação do observador para o estado da Palestina. Ver Third Committee Condemns Brutal Bombing of Gaza Hospital, Enforced Displacement of Palestinian Civilians, Emphasizes Urgent Need for Unimpeded Humanitarian Aid. UN, 2023. Disponível em: https://press.un.org/en/2023/gashc4386.doc.htm. Acesso em 19 de outubro de 2023.

[8] Termo conceituado pela filósofa Hanna Arendt no livro “Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal”. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Tradução de: José Rubens Siqueira