O que muda para o mercado após decisão do STF sobre responsabilidade de plataformas

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Após meses de espera, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente publicou no último dia 5 de novembro o acórdão que redefine profundamente o modo como as plataformas digitais e os provedores de aplicações de internet respondem por conteúdos gerados por terceiros.

Esse acórdão é resultado dos julgamentos dos Temas 533 e 987, ocorridos em junho de 2025, quando a corte reinterpretou o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), declarando sua redação original parcialmente inconstitucional, por entender que não oferecia proteção suficiente aos direitos fundamentais e à integridade do debate democrático.

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Com isso, o STF rompeu com o modelo tradicional de “porto seguro” que havia sido adotado no Brasil desde 2014, um regime em que os provedores só podiam ser responsabilizados após o descumprimento de uma ordem judicial específica para retirada de conteúdo, salvo exceções expressas na lei. A partir de agora, o regime passa a adotar uma lógica de responsabilidade compartilhada e contextual, alinhada às tendências regulatórias internacionais observadas, por exemplo, no Digital Services Act da União Europeia.

Na prática, o Supremo ampliou o alcance da responsabilidade civil das plataformas. Elas poderão ser responsabilizadas mesmo sem ordem judicial prévia diante da ocorrência de dano pela não indisponibilização de conteúdos que configurem crimes ou atos ilícitos em geral.

Além disso, o STF estabeleceu que há dever de cuidado e diligência por parte dos intermediários digitais, exigindo uma postura proativa na prevenção de danos e na gestão de riscos decorrentes do uso de suas aplicações, especialmente no que diz respeito à circulação massiva de conteúdos que configurem crimes graves, como atos antidemocráticos, crimes de terrorismo, induzimento ao suicídio ou à automutilação e pornografia infantil.

As empresas passam, assim, a ter de manter mecanismos internos de monitoramento, canais de denúncia e políticas de moderação transparentes, sob pena de responderem civilmente por danos causados pela circulação de conteúdos ilícitos. Essa obrigação não implica responsabilidade objetiva, mas exige comprovação de atuação diligente e tempestiva diante de notificações de usuários ou autoridades.

Outro ponto de destaque é a criação de um modelo de autorregulação regulada. O STF sinalizou que as plataformas deverão desenvolver programas internos de governança e compliance digital, documentando suas práticas de moderação, auditoria e resposta a incidentes. Trata-se de uma transição para um modelo híbrido, que combina liberdade empresarial com obrigações constitucionais de proteção de direitos fundamentais.

Do ponto de vista corporativo, a decisão traz implicações estruturais relevantes. Os provedores que operam no Brasil deverão manter representante legal e sede no país, aptos a responder a autoridades administrativas e judiciais, cumprir ordens de remoção de conteúdo e assumir eventuais penalidades decorrentes de descumprimento. Também deverão garantir transparência e rastreabilidade de suas políticas de moderação, mantendo informações de contato acessíveis ao público e às autoridades.

Embora os efeitos das decisões sejam prospectivos, ou seja, aplicáveis apenas a partir de sua publicação, sem retroatividade, o novo entendimento implicará custos adicionais de conformidade, demandando investimento em equipes jurídicas e tecnológicas, além da adoção de ferramentas automatizadas de detecção de conteúdo ilícito.

O acórdão deixa zonas de incerteza interpretativa que deverão ser esclarecidas em embargos de declaração ou por meio de regulamentação infralegal. Em síntese, as decisões do STF representam uma virada de chave no regime jurídico da internet brasileira. O modelo puramente reativo, baseado em ordens judiciais, cede lugar a uma lógica de diligência preventiva e responsabilidade proporcional. As plataformas deixam de ser apenas espaços de hospedagem para se tornarem atores corresponsáveis pela integridade do ambiente digital.

Segue abaixo um comparativo entre o regime original do artigo 19 do Marco Civil da Internet e as alterações interpretativas introduzidas pelo STF.

Aspecto Antes do julgamento (interpretação original do art. 19 do MCI) Após os julgamentos (Temas 533 e 987 – STF)
Base legal Art. 19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) Art. 19 reinterpretado conforme a Constituição Federal
Regra geral A plataforma só poderia ser responsabilizada se descumprisse uma ordem judicial prévia e específica determinando a remoção do conteúdo. Não havia responsabilização por omissão anterior ao recebimento da ordem.

 

Responsabilidade civil ampliada: as plataformas podem ser responsabilizadas mesmo sem ordem judicial (basta uma notificação extrajudicial), pela ocorrência de dano diante da não remoção de determinados conteúdos, como crimes ou ilícitos civis. Aplica-se a regra antiga no caso de crimes contra a honra, bem como ao provedor de serviços de e-mail; provedor de aplicações de reuniões fechadas por vídeo ou voz; provedor de serviços de mensageria instantânea, exclusivamente no que diz respeito às comunicações interpessoais. Em qualquer caso, não há responsabilidade objetiva.

 

Dever de cuidado Não havia dever de monitoramento ativo. Reconhece-se um dever de monitoramento mediante atuação proativa responsável, transparente e cautelosa, especialmente para impedir circulação massiva de conteúdos que configurem crimes graves conforme rol taxativo. Haverá responsabilidade se configurada falha sistêmica – i.e., quando provedor não adotar medidas adequadas de prevenção ou remoção desses conteúdos.

 

Presunção de responsabilidade Não havia presunção de responsabilidade civil das plataformas, que só podiam ser responsabilizadas mediante descumprimento de ordem judicial específica. Há presunção de responsabilidade em casos de conteúdos ilícitos quando relacionados a anúncios e impulsionamentos pagos; ou disseminação por meio de chatbots ou robôs. Nessas hipóteses, os provedores podem ser responsabilizados independentemente de notificação prévia, salvo se comprovarem que atuaram com diligência e em tempo razoável para tornar o conteúdo indisponível.
Papel das plataformas Atuação reativa e passiva, limitada ao cumprimento de ordens judiciais para remoção de conteúdo. Atuação ativa e preventiva, com dever de diligência, implementação de mecanismos internos de moderação, canais de denúncia e gestão de riscos sistêmicos.
Impacto regulatório A interpretação anterior do artigo 19 do MCI refletia um regime mais estático, alinhado à lógica normativa e tecnológica vigente em 2014, sem considerar evoluções posteriores no cenário digital e regulatório. Além da ampliação da responsabilidade civil – subjetiva, dos provedores de aplicação, o STF inaugura modelo obrigatório de autorregulação.
Tese final Responsabilidade civil subjetiva, com exigência de culpa e sem obrigação de remoção de conteúdo sem ordem judicial, salvo em hipóteses legais específicas. Inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19; responsabilidade compartilhada e contextual das plataformas.

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Para o mercado, o recado é claro: a conformidade regulatória passa a ser elemento central da estratégia de negócios. Empresas que investirem desde já em governança de conteúdo, transparência algorítmica e protocolos de resposta rápida estarão mais preparadas para operar sob o novo paradigma e preservar tanto a confiança dos usuários quanto a credibilidade institucional perante autoridades e investidores.