Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quinta-feira (8/2) o julgamento da Reclamação (RCL) 64.018, em que a plataforma de entregas Rappi contesta uma decisão da Justiça do Trabalho que concedeu vínculo empregatício na modalidade de contrato intermitente a um entregador.
O julgamento é importante porque será a primeira vez que o plenário do STF se manifestará sobre a existência ou não de vínculo empregatício entre entregadores e plataformas. Embora uma decisão do STF em reclamação não seja vinculante, a posição colegiada dos ministros influenciará todos os outros tribunais do país, já que demonstrará qual é o entendimento da Suprema Corte sobre a matéria.
O diretor de conteúdo do JOTA, Felipe Recondo, aponta que “é tarefa fácil para este Supremo Tribunal Federal (STF) concluir que não há vínculo de emprego entre motoristas/entregadores e as plataformas de aplicativos”. O julgamento “é daqueles cujo resultado todos no tribunal já sabem, assim como o placar e de quem deverá ser o voto vencido”.
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A reclamação foi remetida ao Plenário em dezembro do ano passado pela 1ª Turma do STF. O objetivo do julgamento é que os ministros consolidem uma posição em relação ao vínculo de emprego de motoristas e entregadores de aplicativos. Até agora, o tema só foi discutido pelas Turmas e em decisões monocráticas.
A Rappi alega que decisões da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3) e da 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) reconhecendo o vínculo de emprego de um entregador teriam desrespeitado entendimentos do Supremo sobre a legalidade de outras formas de contratação além da regida pela CLT e da validade de terceirização de atividade-fim. A empresa cita as decisões do STF na ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252, na ADI 5.835 e no RE 688.223.
No final de novembro, o ministro Alexandre de Moraes, relator da reclamação, concedeu uma medida liminar para suspender o processo e o cumprimento provisório da sentença da Justiça do Trabalho por entender que a decisão reclamada “parece desconsiderar as conclusões do Supremo Tribunal Federal” que permitem contratos de trabalho distintos dos tradicionais.
A Procuradoria-Geral da República (PGR), sob o comando de Paulo Gonet Branco, mudou seu posicionamento sobre a questão. Em manifestação enviada ao STF no final de janeiro, a PGR afirmou que decisões trabalhistas em face da Rappi contrariam o entendimento da Corte sobre a validade de formas alternativas de contratação.
O que dizem os entregadores
O caso a ser julgado é de um entregador que diz ter sido contratado pela Rappi para realizar entregas, normalmente de alimentos, para clientes indicados pela plataforma entre 10 de abril de 2019 e 16 de agosto de 2019. Na ação trabalhista, julgada pela 16ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, o entregador pediu reconhecimento de vínculo empregatício, bem como o pagamento de verbas trabalhistas e rescisórias, adicional de periculosidade, danos morais e indenização pelo uso do veículo.
Em entrevista ao JOTA, Pedro Zattar Eugenio, o advogado que representa o entregador, disse que não concorda com a visão das empresas de que os entregadores seriam empreendedores prestando um serviço. Para ele, o fato de os motofretistas não poderem cobrar o preço que quiserem e sofrerem punições quando recusam pedidos descaracteriza a ideia de que sejam empreendedores com jornada flexível.
“A maior parte são jovens que estão se expondo a uma jornada perigosa, trabalhando de noite, de final de semana, de dez a doze horas por dia, sem direito nenhum”, afirma o advogado.
Quanto ao julgamento de quinta-feira, Zattar acredita que uma reclamação não seria o meio mais adequado para uniformizar a jurisprudência do tema. “No nosso entendimento, o STF não poderia julgar a questão fática. Essa decisão seria da Justiça do Trabalho, que decidiu pelo vínculo”, diz o advogado. Para ele, o cenário ideal seria que os ministros tirassem o tema de pauta para dar mais tempo e espaço para que haja uma discussão com todos os atores interessados na decisão.
A Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativo (Anea) concorda que o cenário ideal seria o de que não houvesse julgamento agora. Nicolas Souza Santos, secretário da aliança, diz que seria necessário dar mais tempo para que o debate amadureça entre os atores envolvidos antes do Supremo tomar uma posição. “O STF não deveria decidir nada por agora, é preciso acompanhar os debates. E se for decidir atuar, que ouça todo mundo também”, diz Santos.
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Para a Anea, no modelo atual dos aplicativos de delivery, o vínculo de emprego precisaria ser reconhecido. A associação entende que como as plataformas como iFood e Rappi controlam o preço, o tempo de entrega e a avaliação dos motoristas, o modelo de trabalho não pode ser descrito como autônomo. “Não entendemos isso como autonomia. Se os aplicativos nos derem autonomia, tudo bem. Mas se nos controlarem, então não será autônomo, será celetista”, diz Souza.
O que diz a Rappi
A empresa, por sua vez, nega o vínculo e afirma que o que existia com o entregador era uma parceria para o serviço de entregas de mercadorias por meio da plataforma. Segundo a Rappi, as pessoas interessadas na realização do serviço de entrega podem se habilitar espontaneamente e têm total liberdade para escolher quando prestarão seus serviços, o que descaracterizaria o vínculo.
Michele Volpe, gerente jurídica sênior da Rappi, disse em entrevista ao JOTA que a atividade realizada pelos entregadores que utilizam a plataforma não se enquadra de maneira precisa em nenhum modelo de trabalho previsto na legislação brasileira. Para a empresa, os entregadores são “profissionais independentes” que são mandatários dos consumidores finais para realizar alguma entrega ou serviço. Nesse contexto, a Rappi seria uma mera intermediadora das pontas da cadeia.
“O entregador pode ficar online ou offline na plataforma no momento em que ele quiser. Ele tem o direito de aceitar ou recusar uma demanda, algo que dentro de um contrato CLT não é possível”, diz Volpe.
Nesse sentido, a gerente jurídica comemora a mudança de posicionamento da PGR antes do julgamento no Supremo. “É extremamente relevante. Acho que demonstra, assim, o entendimento da PGR sobre o modelo de negócio novo, diferenciado, das plataformas digitais”, diz.
A executiva do Rappi acredita que uma decisão do STF pela não existência do vínculo traria uma “segurança jurídica extremamente favorável” para as empresas do segmento, embora ela defenda que seria importante também haver uma legislação regulamentando o modelo de trabalho das plataformas.
“É um julgamento muito importante para o setor, não só para a Rappi, mas para todas as empresas de plataforma e tecnologia. Acredito que o papel do Supremo vai ser o de colocar as bases constitucionais deste tópico sobre as quais serão montadas futuramente uma legislação pelo Congresso”, diz Volpe.
Responsabilidade social
Durante a discussão da reclamação da Rappi na 1ª Turma, a ministra Cármen Lúcia mostrou-se preocupada com a garantia de seguridade social para os trabalhadores das plataformas. Para a ministra, é importante que o julgamento seja realizado no Plenário para que esse ponto seja debatido.
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em outubro de 2023 mostram que o país tem cerca de 2,1 milhões de pessoas realizando trabalhos em plataformas digitais hoje. Desse total, pelo menos 589 mil pessoas trabalham com os aplicativos de entrega de comida e produtos. Em caso de doença ou acidente de trabalho, por exemplo, o que acontece com esses trabalhadores?
O tema foi discutido no grupo de trabalho instituído pelo governo federal no segundo semestre do ano passado. Na época, representantes das empresas e dos motoristas foram ouvidos para que se tentasse chegar a um acordo para melhorar as condições de trabalho nas plataformas. O grupo encerrou as discussões sem que um consenso fosse formalizado, mas a expectativa é que o governo federal apresente um projeto de lei sobre o tema ainda em 2024.
A gerente de políticas públicas da Rappi do Brasil, Anna Carvalhido, disse que a empresa acha interessante fazer essa inclusão dos entregadores no sistema de Previdência Social, mas defende que a operacionalização dessa cobrança por parte do governo seja feita de forma a garantir a “manutenção da flexibilidade”.
Na prática, permitir que sejam somadas as contribuições das diferentes plataformas que os motoristas utilizam. No caso de emergências de saúde, a Rappi diz que já oferece um seguro que respalda os motoristas em caso de acidentes, invalidez permanente ou doenças.
Amicus Curiae
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa as empresas do setor, solicitou admissão no julgamento da reclamação da Rappi como amicus curiae. Na petição, os advogados argumentam que a decisão não irá afetar somente a Rappi, mas todas as plataformas de tecnologia com atuação em serviços de entregas e transporte individual de passageiros, como Uber, 99 e iFood, todas associadas à Amobitec.
“O reconhecimento pela Justiça do Trabalho do vínculo empregatício entre as plataformas tecnológicas e os motoristas e entregadores parceiros traz efeitos nefastos para a ordem econômica e a livre concorrência, além de prejuízos à Administração Pública, ao Erário e aos consumidores. E o mais grave: poderá ter a magnitude de inviabilizar a continuidade dos serviços de transporte privativo de passageiros e entregas por intermédio de aplicativos, que geram bilhões de reais para a economia brasileira”, afirmam a Amobitec, em peça assinada pelos advogados Carlos Mário da Silva Velloso, ex-presidente do STF, Carlos Mário da Silva Velloso Filho, Erico Bonfim de Carvalho e Renata Fernandes Hanones Carpaneda.
Em nota enviada ao JOTA, a associação reiterou sua posição de que o formato estabelecido pela CLT não se amolda à realidade de trabalho criada pelas plataformas. “Esse entendimento vem sendo manifestado há anos por outras instâncias do Poder Judiciário, que firmaram jurisprudência consistente sobre a relação dos parceiros com as plataformas”.
A Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS) avalia que é “de enaltecer-se que a questão seja levada ao Plenário, tanto para estabelecer, de uma vez por todas, qual a posição do Supremo Tribunal Federal, possibilitando que a Justiça do Trabalho observe os precedentes, como para que sejam, de uma vez por todas, dirimidas as últimas resistências ainda existentes no seio da própria Corte, ainda que sejam elas vacilantes”.
“A matéria é extremamente relevante, afinal uma decisão definitiva que forneça segurança jurídica às relações que não são empregatícias alteraria sobremaneira inúmeras organizações empresariais a partir da certeza de que muitas das condenações tradicionalmente impostas pela Justiça do Trabalho deixariam de ocorrer. Conforme já afirmado acima, segurança jurídica é importante, e é de suma relevância sanar a divergência entre as decisões juslaborais e os julgados do STF”, afirmam os advogados Benoni Canellas Rossi e Matheus Galarreta Zubiaurre Lemos, que representam a FIERGS.
Do outro lado, a Associação dos Trabalhadores por Aplicativo e Motociclista do Distrito Federal e Entorno (ATAM-DF) também requisitou participação no julgamento como amigo da corte por representar os trabalhadores diretamente envolvidos na questão a ser analisada.
A ATAM-DF defende que seja reconhecido o vínculo empregatício com todas as proteções e garantias inerentes a ele. Para a associação, caberia ao Executivo, que já está em negociação com as empresas e os trabalhadores, criar as normas definindo as diretrizes desse tipo de relação de trabalho.
O advogado Ronaldo Fleury, do escritório Mauro Menezes e Advogados, que representa a associação, disse em entrevista ao JOTA que espera que o Supremo “não chancele o surgimento de uma nova categoria de trabalhadores sem direitos e sem proteção”.
Outro pedido de ingresso como amicus curiae veio da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). A juíza Luciana Conforti, presidente da Anamatra, alerta para o risco de esvaziamento da competência constitucional da Justiça do Trabalho no julgamento. “Nossa defesa não é para reconhecimento do vínculo, mas para que se entenda que a Justiça do Trabalho tem competência para analisar fraudes caso a caso”, disse a magistrada.
Para o professor Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e colunista do JOTA, se o STF decidir fixar uma tese de que não há vínculo de emprego entre trabalhador sob demanda e plataforma pode “acabar colocando no mesmo balaio o joio e o trigo”.
Isto porque, de acordo com Feliciano, os critérios para definição de vínculo de emprego (pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade) podem ou não estar presentes em relações de motoristas/entregadores e plataformas. E, para ele, é competência da Justiça do Trabalho fazer essa avaliação — não do Supremo Tribunal Federal.