O ano de 2024 promete ser intenso no debate político e regulatório da tecnologia. Três temas com grande impacto no dia a dia das pessoas e para os setores econômicos devem se destacar: a regulação da inteligência artificial, o permanente debate sobre a moderação de conteúdo em redes sociais e a regulação econômica dos mercados digitais.
Inteligência artificial
A regulamentação da inteligência artificial tende a ser pautada com força no Senado. Ainda em 2022, o presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) montou uma comissão de juristas para formular um anteprojeto sobre o tema. Em 2023, Pacheco apresentou formalmente o projeto (PL 2338/2023) e formou uma outra comissão – agora de senadores e senadoras – para debatê-lo. O PL 2338 propõe uma regulação baseada na gestão de risco, vedando a utilização de IA em atividades de “risco excessivo” e impondo requisitos regulatório para as IA de “alto risco”, além de criar uma série de direitos para as pessoas afetadas pelos sistemas de IA.
A Comissão do Senado realizou diversas audiências públicas no 2º semestre de 2023, nas quais surgiram críticas ao projeto, especialmente em relação à sua abrangência e à indeterminação de alguns conceitos. Segundo os críticos, o texto, se aprovado, poderia ser um obstáculo ao desenvolvimento destas tecnologias no Brasil. Por outro lado, os defensores da iniciativa destacam a necessidade de proteção de direitos fundamentais, os dilemas éticos impostos pela tecnologia e seus impactos potencialmente negativos no mercado de trabalho.
De fato, o PL 2338 contrasta com o PL 21/2020, já aprovado pela Câmara dos Deputados, que previa uma regulação mais principiológica e a imposição de menos obrigações a desenvolvedores e a empresas que utilizam da IA. As propostas tramitam em conjunto na comissão, que tem até maio de 2024 para finalizar seus trabalhos.
Além do desafio de equilibrar visões bem diferentes sobre o papel da inteligência artificial e seus impactos na sociedade, a comissão terá de indicar uma solução para outro tema polêmico: quem será a autoridade competente para a regulação da IA. Será algum órgão já existente, uma nova agência ou será outro arranjo institucional o responsável pela supervisão dessas novas tecnologias?
Diferentes órgãos já se movimentam em busca de protagonismo no tema. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) apresentou proposta[1] na qual ela figuraria como órgão regulador central, atuando com o apoio dos órgãos reguladores setoriais e com a criação de um conselho consultivo com participação da sociedade civil.
Em paralelo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostra que também está preocupado com o tema. A corte divulgou em janeiro minutas das resoluções que vão reger as eleições municipais deste ano, e dentre os diversos temas chamou atenção a preocupação com a utilização de tecnologias de IA na propaganda eleitoral para manipular áudios, imagens e vídeos dos candidatos[2].
Já no governo federal, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação anunciou em dezembro que promoverá uma revisão da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA). A pasta pretende concluir o processo até maio deste ano.
Moderação de conteúdo
A regulação da moderação de conteúdo nas redes sociais talvez tenha sido o tema mais polêmico no Congresso em 2023. Os debates em torno do PL 2630/2020, popularmente conhecido como PL das Fake News, envolveram as grandes empresas de tecnologia, governo federal, diferentes setores da sociedade civil e até mesmo a cúpula do Judiciário, mas terminaram em impasse.
Alguns dos motivos foram a inclusão de temas alheios ao foco inicial do projeto, como a remuneração por conteúdo jornalístico nas plataformas, e também a divergência sobre quem seria a autoridade responsável por fiscalizar o cumprimento de obrigações por parte das plataformas.
Para 2024, setores do governo federal voltam a indicar o tema como prioritário na agenda legislativa, mas não parece haver consenso na Câmara sobre os grandes temas que levaram à não votação do projeto no ano anterior. Como alternativa, discute-se a desidratação do último relatório apresentado pelo deputado Orlando Silva (PC do B-SP) ou o fatiamento da discussão para facilitar a sua aprovação.
A dúvida principal parece ser como o governo se posicionará. No ano passado, a “paternidade” do projeto acabou não sendo bem definida, com interlocuções paralelas da Secom e do Ministério da Justiça, mas sem o envolvimento direto de uma figura do alto escalão para levar o tema adiante. Resta saber se isso mudará, em especial tendo em vista a mudança na liderança do MJ.
Regulação econômica de mercados digitais
Outro tema que vem ganhando importância no debate público é a chamada regulação econômica das plataformas, ou seja, a criação de regras, como ocorre em mercados regulados em geral, que disciplinarão o segmento de maneira específica a fim de conformar sua estrutura de mercado. O tema vem sendo discutido mundo afora, tendo o Digital Markets Act (DMA) da União Europeia como principal expoente.
No Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) vem tratando desse tema de forma pontual e reativa, avaliando o impacto das condutas dos agentes econômicos em casos que são submetidos à sua avaliação[3]. Em agosto, o órgão divulgou um estudo sistematizando as decisões sobre o tema[4]. Já a Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda lançou uma abrangente tomada de subsídios sobre a “regulação econômica e concorrencial das plataformas”, o que pode indicar que o órgão, que tem a atribuição de realizar o advocacy concorrencial dentro do governo, deve buscar um maior protagonismo no debate.
No Câmara dos Deputados, foi apresentado o PL 2768/2022, do deputado João Maia (PL-RN), que visa endereçar problemas de concentração econômica nesses mercados. Entretanto, o projeto sofreu diversas críticas, desde a indicação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) como órgão regulador até a própria definição dos agentes de mercado que estariam sujeitos à norma.
Outros temas
A regulação do trabalho por aplicativo, especialmente nos segmentos de delivery e transporte privado de passageiros, é outra discussão latente que pode vir à tona em 2024. Para isso, depende do envio, pelo governo federal, de projeto de lei para regulamentar as relações entre os trabalhadores e as plataformas de intermediação desses serviços. O tema foi objeto de Grupo de Trabalho no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego em 2023.
A regulação do e-commerce internacional também continua no radar do governo, especialmente da Fazenda, mesmo após a aprovação do Remessa Conforme no ano passado. O tema pode fazer parte do esforço arrecadatório do Poder Executivo para o cumprimento da meta fiscal em 2024.
Após a sanção da Lei 14.790/2023, o crescente mercado das apostas esportivas (bets) aguarda a regulamentação a ser expedida pelo Executivo detalhando o funcionamento e o processo de autorização para as plataformas operarem. As operadoras de criptoativos também aguardam regulamentação da Lei 14.478/2022, sob atribuição do Banco Central. O BC abriu consulta pública sobre o tema no final de 2023 e deve expedir o regulamento em breve, abordando temas como segregação patrimonial, regras de governança e segurança cibernética.
[1] Disponível em: ANPD publica segunda análise do Projeto de Lei sobre inteligência artificial — Autoridade Nacional de Proteção de Dados (www.gov.br)
[2] Íntegra das minutas de resoluções disponível em: Audiências Públicas sobre as minutas das resoluções para as Eleições 2024 — Tribunal Superior Eleitoral (tse.jus.br)
[3] Há muitos exemplos possíveis, como a investigação contra a Apple em relação às práticas de sua App Store, o caso do aplicativo iFood e suas relações de exclusividade com bares e restaurantes, as práticas do Google com seu comparador de preço, entre outros.
[4] Estudo disponível em: Mercados de Plataformas Digitais (cade.gov.br)