O protagonismo do STF no julgamento das novas relações de trabalho

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A Justiça do Trabalho, ameaçada de extinção, saiu-se mais fortalecida ainda quando a Emenda Constitucional 45/2004 ampliou sua competência para julgar conflitos decorrentes de outras hipóteses envolvendo relação de trabalho. Além de empregados típicos, sua competência passou a abranger servidores públicos estatutários, representação comercial, previdência complementar, entre outras hipóteses.

No entanto, aos poucos essa nova competência passou a se encolher. Por decisões sucessivas do Supremo Tribunal Federal, compete à Justiça Federal julgar matéria envolvendo servidores públicos federais estatuários, e à Justiça Comum, conflitos envolvendo servidores públicos estaduais ou municipais, planos de complementação de aposentadoria, representação comercial, motoristas autônomos em face de empresas transportadoras, franqueados, corretores e pessoas jurídicas unipessoais, apenas para exemplificar.

Mais recentemente, com as profundas transformações do mercado de trabalho, apregoa-se que a Justiça do Trabalho está novamente sendo ameaçada. Para impedir qualquer tipo de “retrocesso”, surgem movimentos de apoio, além de sugestões de medidas voltadas à recuperação de seu prestígio e manutenção de seu protagonismo na solução dos conflitos trabalhistas.

No entanto, parte-se de aparente equívoco: não há qualquer ameaça à Justiça do Trabalho, tampouco ao seu prestígio ou protagonismo, conquistados ao longo desses mais de 80 anos de história. O que se observa é desajuste entre as profundas transformações do mundo do trabalho e a necessária sensibilidade, por parte de alguns magistrados do trabalho, para captar tais mudanças, quando decidem conflitos dessa ordem e retratam sua visão de mundo em suas sentenças.

Não é razoável continuar enquadrando todos os que trabalham como se empregados típicos fossem, com desprezo a outros estatutos de proteção, fora da CLT.  Novas estruturas das relações de trabalho impõem novos modelos de proteção, mesmo à margem dos padrões tradicionais.

Como se vê, não há o alegado embate entre STF e TST, apenas divergências no reconhecimento dessas mudanças, em busca dos ajustes necessários. Não bastasse, há grau de hierarquia entre os efeitos das teses firmadas pela jurisprudência dos distintos tribunais, sendo imprescindível sua observância com vistas à necessária segurança jurídica.

Essa percepção de que a CLT não se aplica indistintamente a todos que trabalham tomou vulto nos últimos meses e parece ser o tema central dos debates: qual o papel constitucional do STF em face dos conflitos decorrentes das novas relações de trabalho e dos novos modelos de proteção? Que efeitos produzem suas teses vinculantes em face do TST?

As novas estruturas das relações de trabalho e os novos modelos de proteção ao trabalhador em face da transição digital, que pressiona mudanças profundas no mercado de trabalho, reclamam soluções novas, que vão além da tentativa de continuar enquadrando necessariamente quem trabalha no regime da CLT.

Da mesma forma como o Direito do Trabalho surgiu da necessidade de se quebrar dogmas civilistas, que não se adequavam às relações de trabalho, no início da Revolução Industrial (final do século 18), agora impõe-se sua ressignificação e revisitação de seus princípios, inclusive o de proteção.

Isso porque, na origem, partia-se do pressuposto da igualdade real entre operário e dono da fábrica e da força obrigatória do pactuado – o que era contratual, era justo. Esse desequilíbrio foi consertado à revelia dos dogmas civilistas, sob a ótica protecionista do incipiente Direito do Trabalho. Os juristas da época logo perceberam a gravidade da questão social e, desgarrando-se da matriz civilista, passaram a construir um novo modelo de regulação daquelas novas relações de trabalho, inicialmente nas fábricas, para depois estendê-lo a todo empregado subordinado típico.

Agora, está-se diante de novo desafio: que novo modelo devemos construir? Aquela antiga questão social se apresenta com outra face, reclamando soluções novas. Aquele contingente de empregados a quem se aplica a CLT está cada vez mais reduzido. Novos trabalhadores ao longo dos últimos anos vêm surgindo nesse novo cenário das relações de trabalho, com novos vínculos e novas modelagens de regulação. Muitos se utilizam de plataformas digitais; proliferam os profissionais liberais que celebram contratos de prestação de serviços – os chamados “pejotas”; intensificam-se os contratos de franquia ou de representação comercial, sem falar dos corretores de imóveis, de seguros e de tantas outras relações, onde prevalece a autonomia, com espaço para a coordenação, no lugar da subordinação típica.

Nesse cenário, outro elemento remodelou as relações de trabalho, com valorização da liberdade econômica e da livre iniciativa, sem prejuízo do valor social do trabalho: a terceirização, inclusive da atividade-fim, tida injustamente como a face mais cruel da precarização do trabalho.

O STF se antecipou no exame dessas transformações do mundo do trabalho e das novas lógicas de proteção, para concluir que se deve admitir novas formas de regulação do trabalho e de proteção, fora da CLT. Não bastasse, vem se posicionando de modo despojado de viés ideológico em relação a todas essas mudanças, ocupando o protagonismo que seria reservado ao TST, e de forma esclarecida vem dando respostas novas à nova questão social, no lugar de insistir no enquadramento de todos na CLT, como se fosse possível represar as mudanças.

A mais alta corte vem reconhecendo não só “a validade de terceirizações ou qualquer outra forma de divisão do trabalho, inclusive relações contratuais, como as existentes na modelagem de franquias”, como vem declarando a licitude da prestação de serviços por meio de pessoa jurídica – “pejota”. Reconheceu, ainda, a competência da Justiça Comum para julgar processos envolvendo representação comercial, onde não há relação de trabalho, tampouco relação de emprego, mas relação comercial regida por lei própria.

Graças a essa sensibilidade para captar mudanças tão profundas, o STF, no exercício de suas prerrogativas constitucionais, vem cassando decisões da Justiça do Trabalho, que insiste em reconhecer vínculo de emprego nesses novos contratos, à revelia dos precedentes da mais alta corte.

De acordo com o STF, nessas decisões envolvendo reclamações constitucionais, deve-se interpretar os contratos de acordo com a lógica da lei de regência e com base nos princípios da boa-fé e do venire contra factum proprium, deduzidos à luz do art. 187, do Código Civil. Segundo o ministro André Mendonça, nesses casos, “interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”.

Levando-se em conta essa lógica que permeia as decisões do STF, não é razoável que um profissional liberal, com ganho mensal superior a R$ 200 mil, tendo celebrado contrato de prestação de serviços, depois de quase uma década venha obter vínculo de emprego, alegando fraude e afronta a seus direitos fundamentais por ter sido excluído do regime da CLT. A Justiça do Trabalho, nesse caso específico, apesar das provas da licitude do negócio jurídico e ausência de vício de consentimento, reconheceu o vínculo de emprego, decisão essa cassada pelo STF.

Talvez esteja na hora de se rever certas posturas de ativismo judicial, como se o papel da Justiça do Trabalho fosse o de implantar políticas públicas, quando deveria se restringir à aplicação da lei, com a sensibilidade que é tão peculiar aos juízes do trabalho em face das questões econômico-sociais. O desafio agora não é quebrar dogmas civilistas, mas superar visão protecionista exacerbada. Parece que, às vezes, o papel da justiça cede espaço à compaixão.