O regime democrático deve ser continuamente aperfeiçoado e essa tarefa requer, necessariamente, ampliar e institucionalizar o diálogo do Estado com os diversos setores da sociedade.
A negociação coletiva trabalhista é um importante canal de diálogo social ressaltado pela Organização Internacional do Trabalho em diversas normas e convenções e destina-se a tratar os conflitos entre capital e trabalho, empregados e empregadores. Governos que valorizam a negociação coletiva investem no aprimoramento do diálogo democrático para reconhecer, compreender e encaminhar soluções para os conflitos inerentes às relações de trabalho.
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É com esse espírito e intenção que o governo do presidente Lula retomou o diálogo institucional com os servidores federais por meio de um sistema de negociação denominado de Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP).
A MNNP é um sistema de negociação cujo objetivo é abordar diversos aspectos da vida laboral dos servidores e servidoras da Administração Pública Federal (APF). Ele está estruturado em três espaços de diálogo e tomada de decisões, também denominados de mesas de negociação. São elas:
Mesa central, que recepciona a pauta comum das entidades representativas dos servidores e servidoras, cujas reuniões ordinárias são trimestrais. Quando necessário e de comum acordo entre as bancadas sindical e governamental, podem ocorrer reuniões extraordinárias;
Mesas setoriais, nas quais serão tratadas questões sem impacto orçamentário relacionadas às condições de trabalho na APF. Essas mesas serão instaladas nos ministérios e órgãos do governo e delas participarão as entidades representativas dos servidores e servidoras e representantes dos respectivos ministérios e órgãos;
Mesas específicas e temporárias, que recepcionam demandas com impactos orçamentários relacionadas às diversas carreiras da APF. Delas participam as entidades representativas dos servidores e servidoras, os representantes de órgãos ou ministérios, gestores, gestoras, assessores e assessoras das secretarias de Relações de Trabalho (SRT) e de Gestão de Pessoas (SGP).
A experiência de negociação coletiva com os servidores federais nos governos anteriores do presidente Lula e da ex-presidenta Dilma
A Constituição de 1988 assegurou aos servidores públicos o direito de livre associação sindical, entretanto, se omitiu em relação ao direito de negociação coletiva. Isso causou um vácuo político e jurídico nas relações de trabalho entre os servidores e o Estado, embora a Lei 8.112/1990, que instituiu o Regime Jurídico Único (RJU), mencione a negociação coletiva como um instrumento possível de regulação dessas relações.
Por outro lado, desde março de 2013, vigora no país a Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do tema. Entretanto, para valer efetivamente, essa convenção precisa ser regulamentada pelo Congresso Nacional por meio de um Projeto de Lei.
Esse vácuo gerou constantes dificuldades e tensões na relação entre o Estado empregador, os servidores e servidoras e suas entidades representativas. A regulamentação da Convenção 151 da OIT, que o atual mandato do presidente Lula pretende levar a cabo, preencherá a lacuna deixada pela Constituição de 1988.
Entretanto, a ausência de regulamentação do direito de negociação coletiva não impediu o diálogo e a construção de alternativas para a solução dos conflitos trabalhistas no setor público. Durante os governos anteriores do presidente Lula e da ex-presidenta Dilma Rousseff, o governo federal manteve processos de negociação com os servidores, servidoras e suas entidades representativas por meio da Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP), criada em 2003 e coordenada pela Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG).
Os resultados dos processos de negociação realizados na MNNP foram formalizados em Termos de Acordo, que são documentos que consolidam entendimentos estabelecidos entre o Governo Federal e as entidades representativas dos servidores e servidoras da APF direta, autárquica e fundacional. Para terem efetiva validade jurídica, os Termos de Acordo são encaminhados ao Congresso Nacional sob a forma de Projetos de Lei.
Durante os catorze anos de funcionamento da MNNP nos governos anteriores do presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, foram celebrados 175 Termos de Acordos que contemplaram cerca de 1,2 milhão de servidores públicos federais ativos, aposentados e pensionistas.
Em 2003, o protocolo que instituiu a MNNP fundamentou-se em princípios constitucionais, entre os quais destacamos: i) a participação popular, que fundamenta o Estado Democrático de Direito e assegura o controle social dos atos de gestão do governo; e ii) a liberdade sindical, que reconhece a legitimidade dos sindicatos para defender os direitos dos trabalhadores e explicitar os conflitos inerentes às relações de trabalho.
Apesar dos inquestionáveis avanços obtidos na primeira década de funcionamento da MNNP, o governo e as entidades sindicais dos servidores e servidoras não conseguiram regulamentar oficialmente o direito de negociação coletiva no setor público. Esse fato teve sérias consequências após o impeachment da ex-presidenta Dilma.
Os governos Temer e Bolsonaro impuseram grandes obstáculos ao processo de negociação. Além disso, precarizaram as condições de trabalho, atacaram as entidades representativas dos servidores e servidoras e naturalizaram o assédio moral institucional. Nesse contexto adverso, a ausência de regulamentação do direito de negociação coletiva acirrou os conflitos trabalhistas e levou, algumas vezes, à deflagração de greves cujas consequências foram danosas para população. É sabido que a ausência de negociação e diálogo estimula a conflituosidade nas relações de trabalho e pode afetar. negativamente, de forma direta ou indireta, outros setores da sociedade.
A retomada do diálogo e da negociação com os servidores, servidoras e suas entidades representativas
A eleição do presidente Lula para um terceiro mandato recolocou na agenda a retomada do diálogo e da negociação coletiva e a regulamentação do direito de negociação coletiva.
A MNNP foi reinstalada em fevereiro de 2023 com o propósito inicial de discutir o reajuste salarial e dos benefícios, após sete anos durante os quais uma parcela expressiva dos servidores e servidoras nada obteve. Em maio deste ano foi celebrado, entre o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) e as entidades representativas dos servidores e servidoras, o primeiro Termo de Acordo resultante dessa mesa. As principais conquistas alcançadas foram o reajuste salarial linear e geral de 9% e o aumento de 43,6% no valor do auxílio-alimentação.
No decorrer dos trabalhos da MNNP, aprovou-se a instalação das mesas de negociação setoriais e das mesas específicas e temporárias, cujas atribuições foram comentadas no início desse artigo.
Desde maio até novembro de 2023, a Secretaria de Gestão de Pessoas (SGP) recebeu mais de 60 solicitações formais de instalação de mesas específicas e temporárias para discutir a reestruturação de diversas carreiras da APF. A Secretaria de Relações de Trabalho (SRT), por sua vez, recebeu mais de 50 solicitações de entidades sindicais dos servidores e servidoras para discutir os mais diversos temas.
Desse total, foram oficialmente realizados processos de negociação em mais de vinte mesas específicas e temporárias, dos quais três resultaram na celebração de Termos de Acordo sobre a reestruturação das carreiras da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), da Agência Nacional de Mineração (ANM) e dos Analistas Técnicos de Políticas Sociais (ATPS). Além disso, estão sendo analisadas propostas de aperfeiçoamento da estrutura de diversas carreiras que têm baixo ou nenhum impacto orçamentário imediato. Essas propostas poderão resultar em um Projeto de Lei que o governo federal deverá encaminhar ao Congresso Nacional, em regime de urgência, ainda em 2023.
Cabe mencionar que a atuação da bancada governamental nas mesas específicas e temporárias tem sido pautada por um conjunto de diretrizes de carreiras formuladas pelo MGI. Essas diretrizes pretendem promover a excelência na prestação de serviços públicos; a gestão dinâmica da força de trabalho; a valorização e o desenvolvimento contínuo dos servidores e servidoras; o reconhecimento do mérito individual; a cooperação entre as equipes de trabalho; e uma melhor alocação da força de trabalho. Pretendem também simplificar os planos, carreiras e cargos efetivos; agrupar as carreiras com atribuições semelhantes e priorizar as carreiras e os cargos efetivos de atuação transversal, ou seja, cujas atribuições sejam comuns a diversos órgão e ministérios. Essas diretrizes, na medida em que forem implementadas, promoverão uma maior harmonização e racionalização do sistema de carreiras da APF, constituindo-se, desta maneira, em eixo fundamental de uma verdadeira reforma administrativa, cujos objetivos são incrementar as capacidades de atuação do Estado e promover maior desempenho institucional agregado do setor público federal, tanto internamente, como em suas relações com agentes do mercado e da sociedade, dinamizando as entregas e melhorando a qualidade dos bens e serviços prestados à população.
As mesas temporárias específicas de negociação: diagnóstico preliminar
As consequências de um longo período de ausência de diálogo, durante o qual foram frequentes os ataques dos governos aos direitos dos servidores e servidoras e às suas entidades representativas, emergiram nas mesas de negociação na forma de uma insatisfação generalizada.
Ficou patente para os negociadores de ambas as partes a deterioração material e subjetiva das condições de trabalho, o desmonte dos diversos órgãos públicos e o total descaso dos dois últimos governos com as políticas públicas mais elementares. Nesse cenário, era absolutamente previsível que as negociações fossem marcadas por tensões e conflitos que só o diálogo democrático, transparente e persistente pode abordar de forma adequada.
Em relação ao tema das carreiras da APF que está sendo tratado nas mesas específicas e temporárias, o diagnóstico preliminar é desafiador. Atualmente, existem no Poder Executivo Federal 43 planos de cargos, 117 carreiras, mais de 2.000 cargos efetivos e cerca de 250 tabelas remuneratórias diferentes. A complexidade do atual sistema de carreiras dificulta a gestão e a racionalização das atividades governamentais e as respectivas entregas à sociedade. Observa-se, ademais, grandes desigualdades remuneratórias; inadequação de diversos cargos às transformações recentes no mundo do trabalho e à entrega eficaz das políticas públicas; diferenças remuneratórias injustificáveis entre cargos com atribuições semelhantes; e critérios ainda passíveis de aperfeiçoamentos para a movimentação funcional, a realização de concursos e o provimento de vagas.
Esse quadro complexo dificulta enormemente a gestão de pessoas na APF e, consequentemente, a implementação de políticas de desenvolvimento e de gestão de desempenho dos servidores. Além disso, enseja disputas deletérias entre as categorias do funcionalismo federal. Aquelas que têm maior influência no Legislativo e peso no Executivo podem mais facilmente conquistar suas reivindicações.
Dado esse quadro e as costumeiras restrições orçamentárias, institucionais e jurídicas, os desafios dos gestores e negociadores são complexos e diversos. Não existem soluções rápidas nem fáceis no horizonte imediato.
Para lidar com esses imensos desafios é necessário, primeiramente, afirmar que a democracia é o princípio e o método que norteia o processo de negociação. Como princípio, entende-se que a democracia é a única forma de tratamento e solução de conflitos numa sociedade marcada por imensas desigualdades e frequentes experiências autoritárias. Como método, supõe persistência, criatividade e disponibilidade para a construção de acordos mais perenes, mesmo diante de fortes tensões e divergências.
Em segundo lugar, é preciso manter a confiança e a boa-fé entre o governo e as entidades sindicais de servidores e servidoras. A maioria das categorias e as suas entidades sindicais têm a memória do quão positivos foram os governos anteriores de Lula e Dilma sob o ponto de vista das conquistas materiais e políticas, reconhecem os reveses dos últimos anos e estão empenhadas em reconstruir o diálogo em bases democráticas.
Do lado do governo, além de um firme compromisso com a transparência e o diálogo, existe a compreensão sobre as dificuldades enfrentadas pelos servidores e servidoras, entre elas, o assédio moral institucionalizado na gestão de pessoas, o sucateamento das condições de trabalho, a desvalorização profissional, a falta de perspectivas de progressão funcional e as desigualdades remuneratórias. Quanto ao assédio moral, vale registrar que o governo federal instituiu Grupo de Trabalho Interministerial, com a participação de 10 órgãos, para elaboração de Plano de Enfrentamento ao Assédio e à Discriminação na APF, o qual deverá ser entregue até o final de 2023.
Tudo somado, o restabelecimento de relações democráticas nos processos de negociação requer, de ambas as partes, num contexto de inegáveis restrições, um elevado grau de realismo, prudência e parcimônia na formulação de propostas e contrapropostas. Exige também o abandono de posturas isoladas e imediatistas que podem resultar em consequências indesejáveis do ponto de vista orçamentário, da racionalização do sistema de carreiras e da própria gestão de pessoas.
Por fim, o diálogo nas mesas de negociação precisa caminhar em direção a uma visão de futuro sobre o Estado, as relações de trabalho e a gestão de pessoas na APF. É preciso enfrentar certas características históricas e estruturais do Estado brasileiro, entre elas, o autoritarismo, o corporativismo, o burocratismo, o privatismo, o escapismo e o imediatismo que, infelizmente, ainda estão presentes na administração pública brasileira.
Acreditamos que, com tenacidade e espírito republicano, criaremos bases materiais e dialógicas mais fortes e perenes para o enfrentamento e superação positiva dos problemas apontados.