O PL do Carf e a autocomposição tributária federal

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A aprovação do PL 2384/23, o PL do Carf[1], pelo Senado na forma do Parecer de Plenário 127/23 trouxe a expectativa de relevante reforma do processo tributário, com aperfeiçoamento dos métodos federais autocompositivos de solução de conflitos tributários.

Afinal, para ficar somente em alguns dos pontos mais importantes no campo da autocomposição, o referido PL previa:

a) a submissão à Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal (CCAF), nos termos do 36 da Lei 13.140/15, de litígio entre autoridade fiscal/aduaneira e órgão regulador que abrangesse crédito tributário/penalidade isolada em operação ou atividade autorizada por órgão regulador (inclusão do art. 14-B no Decreto 70.235/72);
b) transação tributária específica, de iniciativa do sujeito passivo, para créditos inscritos em dívida ativa e em discussão judicial que tivessem sido resolvidos favoravelmente à União pelo voto de qualidade (caput do art. 3º do PL 2384/23). Tal transação seria regulamentada pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional, conteria condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos e consideraria o prognóstico de risco judicial de cada processo (observando a nova disciplina do voto de qualidade – parágrafo único do art. 3º do PL 2384/23);
c) a disponibilização obrigatória, pelo fisco federal e com o fim de incentivar a conformidade tributária, de métodos preventivos de autorregularização de obrigações principais/acessórias (art. 6º do PL 2384/23), que incluiriam, por exemplo, a concessão de prazo para recolhimento de tributos sem aplicação de penalidades (art. 7º do PL 2384/23);
d) a modificação da transação de teses (16 e seguintes da Lei 13.988/20), que passaria a abranger desconto de até 65% da dívida, com quitação em até 120 meses e, no caso de pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte, desconto de até 70% da dívida, com quitação em até 145 meses (art. 9º do PL 2384/23); e
e) a aplicação, à transação de teses, dos dispositivos da transação na cobrança (10 e seguintes da Lei 13.988/20) que: (i) permitem a utilização de créditos de prejuízo fiscal/base de cálculo negativa da CSLL; e (ii)  determinam que os descontos não sejam computados na base de cálculo de IR, CSLL, Cofins e PIS.

Embora outras melhorias fossem recomendáveis na autocomposição federal[2], as disposições acima do PL 2384 trariam um claro avanço no seu desenvolvimento.

A sanção, com vários vetos (Mensagem 487/23), do referido PL na forma da Lei 14.689/23 concretizou apenas parcialmente este avanço[3]. Como os mencionados vetos acabam por restringir o direito fundamental de acesso à justiça (art. 5º, XXXV da CR/88), cuja releitura suscita contínua ampliação dos meios autocompositivos na seara tributária[4], mostra-se indispensável abordá-los neste artigo.

A abordagem está limitada, assim, aos vetos ligados à autocomposição tributária. O primeiro deles impediu a inclusão do art. 14-B no Decreto 70.235/72: foi vetada a possibilidade de submeter à CCAF, nos termos do art. 36 da Lei 13.140/15, os litígios entre autoridade fiscal/aduaneira e órgão regulador tendo em vista crédito tributário/penalidade isolada em operação ou atividade autorizada por órgão regulador.

Ao que parece, as razões deste veto foram de duas ordens: (i) a autoridade fiscal/aduaneira e o órgão regulador teriam sua competência própria, sendo exclusiva a competência da administração tributária para dispor sobre divergência de classificação de mercadorias; e (ii) a submissão do conflito à composição extrajudicial pela AGU implicaria renúncia do direito de recorrer ao Carf (art. 38 da Lei 13.140/15).

Tais razões não parecem adequadas ao veto. A divergência de classificação de mercadorias não é a única espécie de litígio que estaria abrangida pela norma vetada. Divergências entre autoridade fiscal e órgãos reguladores (entendidos em sentido amplo) são relativamente comuns. Basta lembrar as discussões que envolvem amortização de ágio e empresa veículo, combatidas pelo fisco federal.

No processo administrativo 16561.720032/2015­02, a 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais reconheceu que a existência de empresa veículo constituía imposição regulatória da CVM e Aneel; por isto, decidiu, a despeito da oposição do fisco, ser “(…) legítima a transferência do investimento com ágio, notadamente quando existentes restrições societárias e regulatórias que orientaram a criação de empresa ‘veículo’”.

O mecanismo contido na norma vetada poderia servir para lidar com divergências como esta, sendo que a renúncia do direito de recorrer ao Carf (art. 38 da Lei 13.140/15) em nada prejudicaria a sua utilização.

Parece também inadequado o veto ao parágrafo único do art. 3º do PL 2.384/23. O caput deste artigo contemplava transação tributária específica, de iniciativa do sujeito passivo, para créditos inscritos em dívida ativa e em discussão judicial, resolvidos favoravelmente à União na instância administrativa pelo voto de qualidade. O citado parágrafo único aduzia que a regulamentação desta transação conteria condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos e levaria em conta o prognóstico de risco judicial de cada processo e a nova disciplina do voto de qualidade.

A referida transação específica está agora prevista no caput do art. 3º da Lei 14.689/23, mas o mencionado parágrafo único foi vetado, sob alegação de contrariedade ao interesse público e violação da isonomia. Lê-se nas razões do veto: “(…) a determinação de que a transação aqui proposta ‘conterá condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos e considerará o prognóstico do risco judicial de cada processo’ poderia não ser adequada na totalidade dos casos uma vez que dispõe de forma genérica e subjetiva, sem estabelecer balizas ou condições”.

Ora, um regime transacional que ofereça concessões que não sejam piores do que as de outros regimes de transação tributária e que leve em consideração o risco judicial de cada processo é um regime composto por critérios objetivos, e não subjetivos, de concretização da isonomia e de materialização do interesse público primário. Logo, o citado veto excluiu os critérios objetivos que trariam racionalidade e coerência à transação específica da Lei 14.689/23. Manteve-se a casca e jogou-se fora o precioso fruto do processo legislativo de criação desta transação que, agora sim, tem grande potencial de subjetividade, sem balizas ou condições legalmente fixadas.

Por fim, o veto ao art. 6º do PL 2384 parece fundado em erro. O artigo dispunha que, para incentivar a conformidade tributária, o fisco federal deveria obrigatoriamente disponibilizar métodos preventivos de autorregularização de obrigações principais/acessórias de tributos por ele administrados.

A disponibilização dos aludidos métodos preventivos não acarreta, ao contrário do que se lê no veto, ofensa ao interesse público e à segurança jurídica em razão da “implementação indiscriminada, ou seja, a todos os casos”, o que “poderia implicar redução da arrecadação espontânea, incentivo à postergação do pagamento de tributos e redução da eficácia de programas de conformidade.”

O que fez o art. 6º do PL 2384 foi, em atenção ao direito fundamental de acesso à justiça, incentivar a conformidade tributária via meios preventivos de autorregularização de obrigações. Caberia – cabe – à administração tributária modelar estes meios, para evitar as desvantagens destacadas no veto e buscar os benefícios da conformidade. A administração assim atuaria com foco na segurança jurídica e na materialização do interesse público primário.

Todos estes problemas não são, contudo insanáveis. Espera-se que o Congresso Nacional exerça o seu papel constitucional e, nos termos do art. 66 da CR/88, rejeite os vetos que mitigam o avanço da autocomposição tributária federal.

[1] Assim chamado porque abrange a nova disciplina do voto de qualidade no processo administrativo tributário federal.

[2] Por exemplo: ao contrário do que ocorre na transação na cobrança e na transação de teses (esta última em razão da Lei 14.689/23, que será abordada a seguir), inexiste norma que disponha que os descontos concedidos na transação de pequeno valor (arts. 23 e seguintes da Lei 13.988/20) não serão computados na base de cálculo de IR, CSLL, Cofins e PIS. Isto é fonte de insegurança jurídica e constitui possível foco de litigiosidade.

[3] A sanção das alterações na Lei 13.988/20 é meritória e representa evolução do sistema transacional federal.

[4] Cf. PISCITELLI, Tathiane. Arbitragem no Direito Tributário: Uma Demanda do Estado Democrático de Direito. In: PISCITELLI, Tathiane et al. (coords.). Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais Brasileiros e a Experiência Portuguesa. 2ª ed.. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2.019, pp. 184 a 195.