O Congresso Nacional aprovou recentemente o PL 2757/2022 que, no apagar das luzes de 2023, será objeto de sanção ou veto presidencial. Aprovado de forma rápida e com votação simbólica, prevê a extinção das cláusulas resolutivas de títulos de domínio público expedidos antes de 10 de outubro de 1997.
Na prática, entrega ao domínio privado milhões de hectares de terra que integram o patrimônio público, especialmente em Rondônia, no sul do Amazonas, sul do Pará e no norte de Mato Grosso. Além de promover uma reforma agrária às avessas, ainda consolida propriedades mesmo em casos de ilícitos ambientais e outras infrações.
A Constituição de 1988 prescreve que os beneficiários da reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis por dez anos, prazo fixado para, a um só tempo, fomentar a concretização da função social da propriedade e desestimular que tais títulos operem como mera moeda de troca.
Mesmo antes da Constituição, essa preocupação já estava de alguma forma presente. Sobretudo entre as décadas de 1970 e 1980, no projeto de colonização nacional pautado na visão da ditadura empresarial-militar que considerava a Amazônia um vazio demográfico, os títulos de domínio eram emitidos mediante Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATP) que continham cláusulas resolutivas.
A finalidade dessas cláusulas consistia em limitar e condicionar o exercício do direito de propriedade de um particular, beneficiado por recursos da coletividade ao receber terras públicas. Demandava-se não apenas a exploração produtiva das áreas, mas também a apresentação de projeto agrícola que deveria ser cumprido em etapas a serem fiscalizadas pelo Poder Público. Assim, a fim de atender a função social da propriedade, o particular deveria cumprir condições por um determinado período, até que tais obrigações fossem concluídas, sob pena de extinção do direito concedido.
Mas essa política ampliou a concentração de terras. Estima-se, por exemplo, que, nesta época, 6% do território de Rondônia foi destinado a pouco mais de mil pessoas. Além disso, em grande número desses casos, os beneficiários não cumpriram as cláusulas resolutivas a que voluntariamente aderiram. Não realizaram a exploração produtiva nos moldes em que ajustado e se apoderaram de áreas públicas com finalidade meramente especulativa.
O Código Civil estabelece que a ocorrência de condições resolutivas extingue o direito a que ela se opõe. Assim, a mera violação a cláusulas resolutivas, por si só, já extingue o direito de propriedade a que se refere o título de domínio, sem necessidade de qualquer ato desconstitutivo expresso.
Dessa forma, em caso de descumprimento das cláusulas resolutivas, a terra imediatamente volta a ser pública e os títulos passam a existir apenas fisicamente, de modo que se tornam papéis vazios.
Assim, o que o PL propõe não é apenas adiar as consequências do descumprimento de um contrato, e sim abrir mão de uma imensidão de terras que permanecem públicas. E ainda pretende fazê-lo em benefício de títulos podres que favorecem pessoas que receberam terras públicas e não cumpriram o mínimo do que aceitaram desenvolver.
A pretexto de proteger a segurança jurídica, premia-se o infrator que descumpriu as condições que funcionam como pressuposto do direito de propriedade originado de uma área pública.
A rigor, ao tentar apagar a extinção do mundo jurídico de um título podre, materializada a partir de um ato jurídico perfeito, o PL pretende fazer renascer um papel vazio e promover justamente a insegurança jurídica que afirma combater. Pior, premiando aqueles que descumpriram a função social da propriedade, que era requisito para sua própria juridicidade tanto na Constituição anterior como na atual.
Aliás, diversas áreas que foram objeto de descumprimento dessas cláusulas já foram retomadas pelo Poder Público, tendo motivado a instituição de projetos de assentamento, áreas ambientais especialmente protegidas ou são ocupadas por pessoas que há décadas reivindicam que o Estado brasileiro promova uma destinação adequada. O PL, contudo, não explica como solucionar um eventual conflito gerado a partir dessa possível devolução a particulares de terras públicas já coletivamente afetadas.
Vale lembrar que o orçamento para a reforma agrária na gestão Bolsonaro foi quase zero e o ex-presidente não assinou nenhum decreto expropriatório em seu mandato. Ora, se não existem terras desapropriadas, não existe política de reforma agrária. Como explicar então destinar milhões de hectares a particulares que violaram a lei, a Constituição? Estima-se que mais de 80 mil famílias aguardem assentamento, segundo dados do próprio Incra.
Diante desse quadro, o Incra e a Procuradoria Federal Especializada junto ao órgão promoveram manifestações técnicas no sentido do veto à proposta legislativa. O Grupo de Trabalho sobre Conflitos Fundiários e Reforma Agrária também elaborou documento como sugestão de Nota Técnica a ser encaminhada à Presidência da República sugerindo o veto à lei e, caso sancionada, representação à PGR para elaboração de Ação Direta de Inconstitucionalidade. O GT, em suas conclusões, afirmou que:
“Por todo exposto, verifica-se que p PL 2.757/2022, que tem por escopo extinguir as cláusulas resolutivas de títulos de de domínio público expedidos anteriormente a 10 de outubro de 1997, ao revalidar atos jurídicos perfeitos que já tiveram seus objetos esgotados, acaba por entregar milhões de hectares de imóveis públicos a quem a eles não deu função social, promovendo uma verdadeira antirreforma agrária no Brasil.
Assim o fazendo, o PL 2.757/2022 viola os seguintes dispositivos constitucionais: art. 3º, incisos I, II e III; art. 5º, incisos XXIII e XXXVI; art. 183, §2º; art. 184; art. 186, incisos I, II, III e IV; art. 187, §2º; e art. 188″.
Espera-se que essa “antirreforma agrária”, geradora de mais desigualdade social e dilapidação do erário, não se concretize, especialmente vinda de um governo que se elegeu com uma plataforma popular e a favor da agricultura familiar e da distribuição de renda.