O périplo enfrentado pelos contribuintes que pretendem apresentar seguro-garantia antes da inscrição em dívida ativa é antigo e conhecido. A Portaria PGFN nº 164/2014 traz requisitos para que a Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN) considere o instrumento satisfatório para acautelar o crédito, entre os quais há exigência de que a apólice indique o número de inscrição em DAU e do processo judicial.[1]
É fácil, então, perceber a situação de impossibilidade. Mesmo que o contribuinte deseje atender ao regramento administrativo, não há como fazê-lo antes da inscrição em DAU, afinal, não há número de inscrição ou processo judicial a ser informado na apólice.
O problema aflige justamente o contribuinte mais diligente e que, por razões inerentes à atividade que exerce, não pode prescindir de certidão de regularidade fiscal. Para o perfil de quem apresenta seguro garantia precocemente, aguardar o tempo normal do procedimento até a inscrição em DAU não é uma opção, já que o prazo de até 120 (cento e vinte) dias para a “cobrança administrativa” no âmbito da Receita Federal do Brasil (RFB) é demasiadamente longo.[2]
O interessado, portanto, é obrigado a buscar a intervenção do Poder Judiciário, não para resolver um conflito (que não existe), e sim para que a decisão judicial viabilize a superação desse obstáculo puramente burocrático, sendo essa a solução sedimentada na jurisprudência.[3]
Vale dizer, não se vinculando o juiz às exigências da Portaria, pode assegurar a emissão de certidão de regularidade fiscal sem o atendimento integral das condições previstas na regra administrativa. Essa providência, com o advento do CPC 2015, é frequentemente concretizada em tutelas de urgência antecedente, que servem para fazer prevalecer os interesses convergentes no recebimento da garantia, o que é evidenciado, muitas vezes, pela ausência de efetiva contestação nesses casos.
Tramita no Senado, paralelamente, o Projeto de Lei (PL) n° 2.488/2022[4], fruto do trabalho da Comissão de Juristas instituída pelo Ato Conjunto nº 1/2022 dos presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal. Caso aprovado, entre outras proposições, o PL incorporará à lei os requisitos da Portaria da fazenda credora como condição para aceitação do seguro garantia ofertado pelo contribuinte.[5]
A integração na lei dos requisitos da Portaria, conquanto represente a positivação de uma prática relativamente bem aceita, alçará ao nível legal também os problemas decorrentes da imposição dessas exigências. Dificultar-se-á, com isso, a aplicação da solução construída pela intervenção do Judiciário, já que, ao contrário da Portaria, a princípio, o juiz deve observância à disposição legal.
O projeto legislativo, ademais, seguindo a linha da Portaria PGFN nº 33/2018[6], prevê a oferta antecipada de garantia como possibilidade existente após a inscrição em dívida ativa, o que, caso aprovado, pode representar uma barreira legal adicional ao oferecimento do seguro garantia em momento anterior.[7]
A despeito dos aprimoramentos que, de forma geral, são intentados pelo PL, não parece haver justificativa para que o contribuinte que deseja apresentar garantia seja obrigado a aguardar a inscrição em dívida ativa, tampouco é eficiente que a intervenção judicial continue a ser um caminho necessário em uma situação na qual, substancialmente, não há litígio a ser dirimido.
O próprio PL nº 2.488/2022, nesse sentido, representa uma oportunidade para a construção de uma resposta normativa. Poder-se-ia ajustar a redação proposta do artigo 12 do projeto de lei para que a notificação da inscrição em dívida ativa passasse a demarcar apenas o prazo final para a oferta antecipada em garantia, e não o marco inaugural, como consta na proposta apresentada ao Senado.
A ideia é reconhecer na lei que o interesse em garantir o crédito público, que é comum a Fisco e contribuinte, existe desde o momento em que ele se torna exigível. Desse modo, com um ajuste da proposta legislativa, o contribuinte teria a faculdade de efetivar a oferta antecipada da garantia a partir do encerramento do processo administrativo (ou do prazo para apresentação de impugnação) até 20 (vinte) dias após a notificação da inscrição em dívida ativa.
Há, ainda, a possibilidade de construção de alternativas infralegais de equacionamento do problema. Poder-se-ia, nesse sentido, permitir ao contribuinte renunciar ao prazo de “cobrança amigável” no âmbito da RFB e solicitar, ele próprio, a imediata remessa do crédito para inscrição em dívida ativa da União, ocasião na qual seria normalmente formalizada a oferta antecipada da garantia nos termos vigentes atualmente.
A resolução infralegal sugerida, no entanto, além de demandar adaptação nas regras administrativas que estabelecem os procedimentos e prazos para inscrição, exigiria, para ser operacionalizada, uma atualização do sistema eletrônico da RFB (e-CAC), de modo que a renúncia de prazo e imediata inscrição em DAU possa ser realizada por iniciativa do contribuinte interessado em antecipar a garantia.
Outra possível solução administrativa aventada seria a criação de um sistema unificado de garantias do crédito público, regulamentado por norma conjunta entre RFB e PGFN, haja vista que certidão buscada pelo contribuinte ao antecipar a garantia é conjuntamente emitida por esses 2 (dois) órgãos.[8]
Nesse caso, além da elaboração de uma regulamentação que alinhasse internamente as atuações dos órgãos envolvidos, a PGFN precisaria modificar a Portaria nº 164/2014, passando a identificar o crédito garantido através das mesmas informações utilizadas pela RFB para essa finalidade, nos termos da recentemente publicada Portaria RFB nº 315/2023.[9]
Seja como for, pela mudança legal ou por intermédio de medidas de natureza administrativa, é passado o tempo de encerrarmos, definitivamente, esse “contencioso sem litígio”. O contribuinte que deseja apresentar seguro-garantia sem nem mesmo se opor às condições impostas pela fazenda merece essa consideração.
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[1] Art. 3º, V da Portaria PGFN Nº 164/2014
[2]Art. 21, §3º do Decreto 70.235/1972
Art. 2º, §1º da Portaria MF nº 447/2018
Art. 2º da Portaria PGFN nº 6155/2021
Art. 3º, §1º da Portaria PGFN nº 33/2018
[3]Tema/Repetitivo STJ nº 237. Recurso especial nº 1123669/RS, relator: Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 01/02/2010.
[4]Disponível para consulta em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9199177&ts=1680719736679&disposition=inline&_gl=1*1h52uef*_ga*ODczMDE0MzU1LjE2Mzk3MDA3MTE.*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4MTkxMTczMS4zLjAuMTY4MTkxMTczMS4wLjAuMA.
[5]Art. 14, §1º, I do PL n° 2.488/2022;
[6]Art. 6º, II, “a” c/c art. 8º e 9, II da Portaria PGFN nº 33/2018;
[7] Art. 12, II, “a” do PL n° 2.488/2022;
[8] Art. 1º c/c art. 4º e 5º, §1º, I da Portaria conjunta RFB / PGFN Nº 1751/2014;
[9] Art. 8º, III da Portaria RFB nº 315/2023;