Em 05/08/2022 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 14.434/2022, que alterou a Lei 7.498/1986, passando a tratar sobre o piso salarial nacional de enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras. Trata-se de uma luta de mais de uma década das referidas categorias, obtendo uma significativa vitória no Congresso Nacional, com a posterior sanção do então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro.
A partir da referida aprovação, houve a inclusão dos artigos 15-A ao 15-C à Lei 7.498/1986 (o artigo 15-D, que tratava da atualização anual dos valores por meio do Índice de Preços ao Consumidor – INPC, foi vetado), gerando a previsão de pagamento dos seguintes valores: R$4.750,00 como piso salarial nacional dos enfermeiros, bem como R$3.325,00 aos técnicos de enfermagem (70% do valor do piso do enfermeiro) e R$2.375,00 aos auxiliares de enfermagem e parteiras (50% do valor do piso do enfermeiro).
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Um primeiro e importante questionamento se refere ao pagamento dos valores indicados considerando a duração semanal do trabalho dos enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras. Isso porque em inúmeros entes públicos e privados a duração semanal do trabalho utilizada é a de 30h (trinta horas), ainda que não siga o regramento geral do artigo 7º, XIII da CRFB/88 (jornada de 8h/dia e duração semanal de 44h), ou, mesmo, a Decisão COFEN 196/2013, que estabelece a jornada de trabalho de 8h e duração semanal de 40h.
Não existe, portanto, lei especial que determine a duração semanal de 30h para os profissionais acima indicados. Tal limitação foi objeto do Projeto de Lei 2.564/2020, que deu ensejo à já acima indicada Lei 14.434/2022, mas sem sucesso, eis que fora excluída durante a tramitação no Congresso Nacional.
Assim sendo, inexistindo a regra específica legal, e sendo o pronunciamento do COFEN como não vinculante (obrigatório), eis que a competência legislativa privativa para tratar de Direito do Trabalho é da União (artigo 22, I da CRFB/88), temos que a regra constitucional se aplica aos enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras (duração diária de trabalho de 8h e semanal de 44h).
Por conta desse primeiro questionamento foi que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu de maneira vinculante, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7222/DF (relator Min. Luís Roberto Barroso, /publicado em DJe em 15/8/2023), pela utilização dos pisos legais levando em consideração a duração diária de trabalho de 8h e semanal de 44h, conforme disposto no artigo 7º, XIII da CRFB/88.
Outro relevante questionamento se refere ao momento a partir do qual os pagamentos deveriam ser realizados aos indicados profissionais.
Isso porque, em relação aos entes públicos (União, Estados, Distrito Federal, Município e respectivas autarquias e fundações públicas de direito público), existe expressa limitação no artigo 169, §1º da CRFB/88, no sentido de exigir lei específica para qualquer concessão de vantagem pecuniária ou aumento de remuneração, bem como a dotação orçamentária para tanto (ou seja, que haja disponibilidade financeira específica do ente público para pagamento dos novos salários).
Nesse passo, fora promulgada a Emenda Constitucional 127/2022 (em 22/12/2022), para estabelecer que compete à União prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, para o cumprimento dos pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira (tratando de tal tema especialmente pelo acréscimo dos §§14 e 15 ao artigo 198 da CRFB/88).
A referida EC 127/2022 fora seguida pela Lei 14.581/2023 (publicada em 12/5/2023 no Diário Oficial da União), que previu a abertura de crédito especial ao Orçamento da União, no valor de R$7,3 bilhões, para atendimento exatamente do pagamento dos novos pisos salariais.
Passamos a ter, portanto, lei específica e dotação orçamentária para o pagamento dos pisos aos profissionais do setor público. No entanto, ainda faltava a destinação específica dos valores previamente dotados para cada um dos 26 Estados, Distrito Federal e 5.568 Municípios Brasileiros (já incluído, em tal contabilidade, o Distrito Estadual de Fernando de Noronha), o que se deu a partir da Portaria GM/MS 597/2023 (também de 12/5/2023).
A referida Portaria GM/MS 597/2023 estabeleceu, dentre outros pontos, o seguinte: (i) caberá aos gestores estaduais, municipais e distrital o repasse dos recursos às entidades privadas sem fins lucrativos que participam de forma complementar ao SUS, observando os valores de referência a serem disponibilizados no Portal do FNS[1] e a contratualização vigente; (ii) fica estabelecido o prazo de 30 (trinta) dias, após o FNS creditar nas contas bancárias dos Fundos de Saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, para que os respectivos entes efetuem o pagamento dos recursos financeiros aos estabelecimentos de saúde, de acordo com a relação divulgada no Portal do Fundo Nacional de Saúde; e (iii) as entidades beneficiadas deverão prestar contas da aplicação dos recursos aos respectivos gestores dos estados, municípios ou Distrito Federal.
Na mesma Portaria GM/MS 597/2023, ainda, uma informação interessante: “consideraram-se os valores de remuneração/hora inferiores ao instituído por Lei, tomando como referência a carga horária de 40 horas semanais para os pisos instituídos pela Lei nº 14.434/2022, com objetivo de excluir do impacto os vínculos que já contemplavam o valor/hora igual ou superior ao piso. A partir da identificação dos vínculos com remuneração inferior ao valor/hora, os dados extraídos foram organizados por município, considerando a natureza jurídica do responsável pela contratação (Setores público, privado e filantrópicos) e categoria profissional. O cálculo da estimativa de impacto financeiro baseia-se na diferença entre a remuneração instituída no piso e a remuneração identificada na RAIS”. Ou seja, os repasses feitos tomaram como base de cálculo a duração semanal de trabalho de 40h, utilizando-se os parâmetros da Decisão COFEN 196/2013 e, não, a almejada limitação de 30h/semana (ainda não instituída por qualquer lei) e nem a regra geral das 44h/semana (artigo 7º, XIII da CRFB/88).
Diante de todo ocorrido e perante o questionamento sobre o início do pagamento dos pisos, o STF, ainda no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7222/DF (relator Min. Luís Roberto Barroso, /publicado em DJe em 15/8/2023), acrescentou o seguinte:
(i) em relação aos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais, a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022. Os pagamentos deveriam se dar a partir da Portaria GM/MS 597/2023, ou seja, 12/5/2023;
(ii) em relação aos servidores públicos dos Estados, Distrito Federal, Municípios e de suas autarquias, bem como aos profissionais contratados por entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS, a implementação da diferença resultante do piso salarial nacional deve se dar em toda a extensão coberta pelos recursos provenientes da assistência financeira da União, com pagamentos também a partir da Portaria GM/MS 597/2023, ou seja, 12/5/2023;
(iii) em relação aos profissionais celetistas em geral, a implementação do piso salarial nacional deverá ser precedida de negociação coletiva entre as partes, como exigência procedimental imprescindível, levando em conta a preocupação com demissões em massa ou prejuízos para os serviços de saúde. Não havendo acordo, incidem imediatamente os valores da Lei 14.434/2022, desde que decorrido o prazo de 60 (sessenta) dias[2] contados da data de publicação da ata do julgamento[3]. A ata de julgamento foi publicada em 07/07/2023(sendo que o acórdão fora publicado em 25/08/2023).
Nesse momento, portanto, temos as seguintes situações, de acordo com a decisão do STF acerca do tema relacionado ao pagamento do piso salarial nacional de enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras:
(i) os valores dos pisos devem levar em consideração uma jornada de trabalho de 8h e duração semanal de 44h. Assim, caso o profissional realize outro tipo de duração de labor, o pagamento deve ocorrer de forma proporcional;
(ii) o pagamento dos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais, bem como servidores públicos dos Estados, Distrito Federal, Municípios e de suas autarquias, bem como aos profissionais contratados por entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS deve ocorrer a partir de 12/5/2023;
(iii) o pagamento em relação aos profissionais celetistas em geral deve ser precedido de negociação coletiva, ou, caso não ocorra, deverá ser quitado de forma imediata 60 (sessenta) dias após a publicação da ata de julgamento da ADI 7222/DF (o que sequer ocorreu até o momento).
Duas últimas observações.
Seguindo o decidido pelo STF, os pagamentos aos funcionários públicos e os prestadores contratualizados somente possuem dotação orçamentária, nesse momento, para esse ano de 2023 e dependem, necessariamente, de dotações anuais a serem feitas pelo Ministério da Saúde (sendo, portanto, um pagamento condicional).
Por fim, ainda está pendente de julgamento no STF o recurso de embargos de declaração opostos pelo Senado Federal dentro da ADI 7222/DF. Isso porque entendeu o Senado que existem contradições, omissões e obscuridades no julgamento do STF, exigindo a aplicação imediata da Lei 14.434/2022. Até o momento não há previsão para o seu julgamento.
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[1] Devendo o acesso ocorrer em <https://portalfns.saude.gov.br/>.
[2] Utilizou-se, por analogia o art. 616, § 3º, da CLT, que dispõe que, “havendo convenção, acordo ou sentença normativa em vigor, o dissídio coletivo deverá ser instaurado dentro dos 60 (sessenta) dias anteriores ao respectivo termo final, para que o novo instrumento possa ter vigência no dia imediato a esse termo”.
[3] A ata de julgamento nada mais é que uma publicação feita para repassar as informações básicas do dia do julgamento, usualmente indicando horários de início e fim, quem compareceu ou realizou sustentação oral, quais foram os Ministros que participaram e o resultado final.