Com o objetivo de recuperar as perdas sofridas pelo setor de eventos e turismo durante a pandemia da Covid-19, foi criado o chamado Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), instituído pela Lei 14.148, de 3 de maio de 2021. Apesar da boa intenção, o governo federal – mesmo após a mudança de mandato – tem protagonizado uma série de descuidos desde a instituição do programa.
Em um novo capítulo desse imbróglio, foi publicada no último dia 28 de dezembro a MP 1202/2023, que revogou integralmente a isenção tributária contida no Perse, com produção de efeitos a partir de 1º de abril de 2024 para PIS, Cofins e CSLL e a partir de 1º de janeiro de 2025 para o IRPJ.
Diz o art. 178 do Código Tributário Nacional que as isenções podem ser revogadas ou modificadas a qualquer tempo, salvo se concedidas sob determinadas condições e por prazo certo. Na mesma linha, a Súmula 544 do Supremo Tribunal Federal (STF) esclarece que as isenções sob condição onerosa não podem ser livremente revogadas.
A MP 1202 ignora completamente essa regra ao revogar isenção que, sem dúvida alguma, foi concedida sob condições e com o prazo certo de 60 meses. Ora, a Lei 14.148/2021 dispõe que somente farão jus à isenção as pessoas jurídicas enquadradas no setor de eventos, prevendo, para tanto, uma série de requisitos, que vão desde os CNAEs elegíveis até a (inconstitucional) exigência de cadastro no Cadastur até 18/03/2022.
A redação original aprovada pelo Congresso Nacional previa que o Perse seria direcionado ao setor de eventos e turismo e trazia diversos benefícios, desde renegociação de dívidas até uma generosa isenção dos tributos federais PIS, Cofins, IRPJ e CSLL pelo prazo de 60 meses. Havia, ainda, a previsão de que a definição dos integrantes do “setor de eventos” para fins de gozo dos benefícios ali previstos seria trazida por ato do Ministério da Economia que elencaria os CNAEs (Classificação Nacional das Atividades Econômicas) elegíveis.
A desoneração dos tributos federais, contudo, foi vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro e a lei foi publicada em 4/5/2021 sem o aguardado benefício.
Em 21/6/2021 sobreveio a Portaria do Ministério da Economia 7163/2021, que, além de prever os CNAEs considerados do setor de eventos, trouxe restrição até então não prevista na própria Lei 14.148/2021, dispondo que as pessoas jurídicas com as atividades econômicas ali elencadas apenas poderiam ser enquadradas no Perse se estivessem regularmente cadastradas no Cadastur na data de publicação da Lei 14.148/2021.
Em paralelo, o Congresso Nacional trabalhava para derrubar o veto presidencial e fazer valer a isenção tributária prevista na redação original. Em 18/3/2022, foram promulgadas as partes vetadas da Lei 14.148/2021, o que culminou na possibilidade de que as empresas consideradas do setor de eventos e portadoras dos CNAEs estabelecidos pela Portaria ME 7163/2021 passassem a usufruir de alíquota zero das contribuições PIS e Cofins, além de IRPJ e CSLL.
Esse cenário contribuiu para instigar ainda mais a insatisfação das empresas pertencentes ao setor de eventos não inscritas no Cadastur até a data prevista na Portaria do Ministério da Economia. A partir de então, diversos contribuintes, em sua maioria bares e restaurantes, desobrigados ao Cadastur por expressa previsão legal, passaram a questionar a legalidade da Portaria ME 7163/2021, especialmente por trazer restrição não prevista na própria lei que pretendia regulamentar.
Em 30 de maio de 2023, já sob a condução do presidente Lula, mais um desacerto foi protagonizado pelo governo federal: a publicação da Lei 14.592, que, no intuito de sanar as irregularidades da Portaria ME 7163/2021, alterou a Lei 14.148/2021 e passou a prever, no próprio texto legal, os CNAEs considerados do setor de eventos, mantendo a obrigatoriedade do cadastro no Cadastur até o dia 18/03/2022.
Longe de resolver os problemas surgidos desde o nascimento do Perse, as alterações promovidas pela Lei 14.592/2023 padecem de graves vícios constitucionais, todos questionados na ADI 7544, proposta pela Confederação Nacional do Comércio, dentre eles a violação aos princípios da isonomia, capacidade contributiva, razoabilidade e proporcionalidade, além de desvio de finalidade e violação à livre concorrência, livre iniciativa e neutralidade.
De fato, a indevida limitação prevista na lei coloca contribuintes equivalentes em situação de desigualdade, permitindo que apenas alguns deles (aqueles inscritos no Cadastur até 18/03/2022) usufruam do benefício fiscal. Ao assim dispor, a norma traz condição impossível aos contribuintes, pois impõe data retroativa para a efetivação de cadastro que até então era opcional para os bares e restaurantes, privilegiando aqueles que, por acaso, haviam feito a inscrição antes desta data.
Nada além do cadastro distingue tais contribuintes: todos atuam no mesmo ramo de atividades (bares e restaurantes) e todos sofreram os impactos da pandemia da Covid-19 da mesma forma. Alçar apenas os bares e restaurantes já cadastrados no Cadastur à condição de gozo dos benefícios fiscais viola, portanto, a livre-concorrência, livre iniciativa e neutralidade da tributação, além de incorrer em evidente desvio da finalidade da norma.
Se a Lei 14.148/2021 pretendeu criar um programa destinado ao setor de eventos (incluídos neste conceito os bares e restaurantes) para compensar os efeitos decorrentes das medidas de combate à pandemia da Covid-19, não há dúvidas de que a limitação dos benefícios do programa aos contribuintes previamente cadastrados não guarda qualquer relação com essa finalidade.
As próprias respostas já juntadas nos autos da ADI 7544 pelos órgãos instados a se manifestarem reconhecem o caráter facultativo do cadastro no Cadastur e confessam que a exigência prevista na norma questionada se deu com a intenção de fomentar políticas para o setor de turismo, intuito absolutamente discrepante da finalidade prevista na Lei 14.148/2021.
O que parece é que o governo federal, na contramão de resolver as diversas aberrações tributárias ocorridas desde a instituição do Perse, tem preferido colecionar ilegalidades e inconstitucionalidades que, assim se espera, serão reconhecidas e corrigidas por meio das diversas demandas judiciais propostas para questioná-las.