O parlamentarismo às avessas no Brasil

  • Categoria do post:JOTA

É inegável o crescente aumento do número de Medidas Provisórias editadas para tratar de assuntos tributários e previdenciários no Brasil. Nas últimas décadas, observou-se uma tendência dos governos em recorrer a esse instrumento em detrimento da elaboração de leis através da capacidade legiferante de deputados e senadores. Ou seja, do regular trâmite do processo legislativo, com deliberação e debate prévio de projetos de lei no Congresso Nacional.

Mais do que isso, as MPs vêm sendo editadas com teor contrário a posições já definidas pelo Congresso, o que, no fim do dia, resulta em desdobramentos que afetam a harmonia entre os Poderes e a estabilidade no país. Um exemplo disso é a MP 1202, editada no último dia 29 de dezembro pelo presidente Lula, que revogou o regime da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB), mesmo após o Congresso ter derrubado veto presidencial que pretendia extinguir a referida sistemática.

Não fosse suficiente a derrubada da legítima opção do Poder Legislativo em uma única canetada, sobre a CPRB, a MP 1202 também passou a limitar o direito de os contribuintes compensarem tributos com créditos detidos contra a Fazenda Nacional, oriundos de decisões judiciais transitadas em julgado. Nada mais absurdo.

De forma deliberada, portanto, o Poder Executivo lança mão das MPs como expediente para implementar agenda própria, alterando políticas tributárias há muito consolidadas com o único e exclusivo fim de atingir metas à revelia de decisões que cabem, ou que ao menos deveriam caber, ao Legislativo.

O Judiciário desempenha papel crucial na análise da constitucionalidade das MPs, especialmente em questões fiscais. Há precedentes que apontam a inobservância dos requisitos necessários à edição (relevância e urgência – art. 62 da Constituição Federal de 1988) para a anulação dos seus efeitos. No entanto, a eficácia dessas decisões judiciais e a capacidade de coibir abusos precisam ser examinadas de forma ainda mais crítica.

Como se sabe, as MPs substituíram os decretos-leis que, no texto constitucional anterior, possibilitavam aos presidentes militares editarem normas sem a anuência do Congresso. Na Constituição Federal de 1988, o instrumento foi concebido como excepcional, destinado a situações de urgência e relevância, ao passo que a frequência e a forma com que tem sido utilizado, em matéria fiscal, levanta dúvidas sobre a legitimidade de sua aplicação.

Para serem convertidas em lei, vale dizer, há rito específico: as MPs devem ser inicialmente avaliadas por comissão mista formada por senadores e deputados e, na sequência, pelos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado. Quando há modificações no texto original da MP, um projeto de lei de conversão (PLV) é submetido à sanção do presidente da República. Em caso de veto presidencial, total ou parcial, cabe ao Congresso (re)avaliar a matéria e, decidindo-se pela derrubada do veto, a parte vetada é reintegrada à lei já sancionada pelo chefe do Executivo.

O prazo de vigência das MPs é de 60 dias, prorrogáveis por igual período. Se não forem votadas em até 45 dias, surge o denominado “regime de urgência”, ficando sobrestadas todas as demais deliberações até que se encerre a votação. Logo, a atuação do Congresso é passiva.

De acordo com estudo de Fernando Lagares Távora, do governo Castello Branco até o governo Sarney, antes da Constituição de 1988, foram emitidos 2.481 decretos-lei. Da promulgação da Carta de 1988 até a Emenda Constitucional 32/2001, foram 6.100 MPs. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a média chegou à expressiva marca de 80,3 medidas provisórias por mês, com destaque sobretudo para o número de MPs reeditadas. Da promulgação da EC 32/2001 até o dia 11 de setembro de 2022, foram editadas 1.136 MPs. Segundo o autor, sob qualquer parâmetro o número é excessivo, e denota que há intervenção do Poder Executivo na atuação do Parlamento.

Nesse contexto, inevitável questionarmos se o Brasil não deveria discutir a necessidade de impor restrições adicionais ao uso do instrumento, já banalizado, em questões fiscais, com a busca por mecanismos que assegurem maior participação do Legislativo nas decisões tributárias.

São oportunas e atuais as ponderações de Bernardo Cabral, que atuou como relator da Assembleia Nacional Constituinte. Em entrevista à TV Senado por ocasião da comemoração dos 30 anos da Constituição Federal, ele lembrou que as MPs deveriam ter sido extirpadas do texto aprovado em 1988, o que não teria ocorrido por um “erro”.

Conforme afirmou o ilustre ex-congressista, com o fim da ditadura militar os membros da Constituinte estavam divididos entre o sistema presidencialista e parlamentarista de governo, sendo certo que a opção pelo primeiro regime foi resultado de uma reviravolta na votação, porque, durante a maior parte dos trabalhos, a Assembleia Nacional Constituinte parecia inclinada a abraçar o parlamentarismo.

Inobstante a opção parlamentarista tenha sido deixada de lado, fato é que a previsão sobre as Medidas Provisórias se manteve no texto constitucional e, na prática, o presidente da República possui amplos poderes. Como afirmou Bernardo Cabral, as MPs foram transformadas em “moeda de troca”.

Na prática, portanto, há espaço para afirmar que existe um parlamentarismo às avessas no Brasil, pois é frequente e inadequado o uso de Medidas Provisórias para impor a vontade do Executivo. A definição mais clara dos critérios de urgência e relevância, e até mesmo a criação de requisitos e mecanismos adicionais que fortaleçam o papel do Congresso na revisão e deliberação sobre as MPs, são cruciais para garantir a legitimidade do processo legislativo. Noutras palavras, é possível propor medidas que visem mitigar os abusos.

É claro que este simples artigo não pretende esgotar o tema, notadamente definir quais seriam os subsídios aptos à compreensão dos limites desses instrumentos. De qualquer forma, urge o debate sobre a implementação de medidas eficazes para coibir abusos em prol de uma ação conjunta do Legislativo, Executivo e Judiciário.

Em última análise, o equilíbrio entre os Poderes e a consolidação de práticas que respeitem os princípios democráticos são essenciais para assegurar a estabilidade e a eficácia do sistema tributário brasileiro. A reflexão ao que se pode chamar de parlamentarismo fiscal deve ser contínua, envolvendo não apenas juristas e acadêmicos, mas toda a sociedade, na busca por um sistema fiscal transparente, equitativo e alinhado com preceitos constitucionais.